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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Xô cuco! (O ninho do Cuco II)

 


Hoje prometia ser um dia tão bom... Eu e Margot saímos com a tarefa árdua de gastar todo o nosso primeiro salário em roupas novas para desfilar com um ar mais profissional no nosso emprego. Mal tínhamos começado a olhar as lojas da avenida Champs Elysées quando... será que é mesmo a Ana?  Ela está bem envelhecida. Bom, realmente, passaram muitos anos desde a última vez em que a vi. Foi naquela vez em que o pai nos levou ao Rio de Janeiro. Que loucura, não sei como minha mãe deixou! Imagine se ele tivesse resolvido ficar morando com a gente na casa daquela mulher. Ele tinha perdido completamente a cabeça por ela.

 

 

Quando a gente chegou no Rio, tudo era tudo novidade. A Chloé ficou deslumbrada, queria aprender o nome em português de todas as coisas, tentava falar com todo mundo, vivia no colo da Ana. Onde quer que a gente fosse, sempre tinha alguém passando a mão na cabeça dela e sorrindo. Eu fiquei meio esquecida, vivia morrendo de medo de me perder lá no Rio e ninguém se dar conta. 

 

O pai e a Ana viviam trocando carinhos. Isso me enchia de medo, medo de perder ele para ela, de ele não querer nunca mais voltar para a minha mãe, medo de ele querer ficar morando no Rio. Naquela época eu ainda tinha esperança de que meus pais fizessem as pazes, mesmo nunca tendo visto meu pai assim carinhoso com minha mãe. Lá em casa as coisas eram mais frias, meus pais viviam brigados. O silêncio dentro da nossa casa era insuportável. Mas quando a gente chegou no Rio, tinha riso na casa o tempo todo. Meu pai viva de bom-humor. A Chloé também estava sempre feliz com toda a atenção que recebia. Eu também estava feliz no início. Mas com o tempo eu fui ficando desesperada para voltar para casa.

 

Lembro que na segunda semana, quando nós fomos passar uns dias em Búzios, eu vivia com dor de barriga, fiquei cheia de brotoeja pelo corpo todo, só queria ficar abraçada no meu pai. Mas eles diziam que aquilo não era nada, que eu deixasse de besteira. Queriam passear, tomar banho de mar. Ninguém me dava bola. Até o dia em que eu fui parar no hospital. A médica disse que não era nada sério, só uma alergia. De fundo emocional. Mas quando eu cheguei de volta na França, minha mãe fez um escândalo, me levou para me examinarem no hospital. Lá eles disseram que devia ser alguma doença tropical. Me viraram do avesso, mas nunca descobriram nada.

 

Acho que depois da minha ida ao médico, as coisas começaram a desandar entre o pai e a Ana. Eles já não se faziam carinho o tempo todo, a Ana ficou meio muda. Eu lembro do dia em que ela se ausentou por várias horas, cuidando do seu apartamento que estava em obra. Aquele dia foi o paraíso. Eu e Chloé passamos o dia todo brincando com nosso pai. Ele cozinhou para nós, fez um monte de coisas boas. A minha fome tinha voltado. Eu estava feliz. Quando a Ana voltou à tardinha, o apartamento estava um caos, a gata tinha desaparecido e não tinha mais um grão de comida para ela. Ela voltou para a rua, foi comer sozinha no shopping center. Eu fiquei tão feliz. As coisas finalmente tinham voltado pro seu lugar.

 

No dia seguinte meu pai estava estranho, acho que eles tinham brigado. Nós sentimos que o clima tinha mudado e passamos o dia brincando silenciosas dentro de casa, vendo a chuva escorrer pela vidraça das janelas. A gata tinha sido encontrada trancada dentro do guarda-roupas e agora só queria ficar no colo da Ana o tempo todo. Meu pai resolveu fazer um almoço em grande estilo: preparou camarões flambados no conhaque. Mas na hora do almoço teve novo estresse. Como todos nós três tínhamos alergia a camarão, somente a Ana podia comê-lo. A comida feita para nós era outra. Ela disse que então não ia querer o camarão, e meu pai ficou magoado. As coisas estavam definitivamente voltando para os trilhos!

 

Depois disso as coisas se acalmaram, mas eles já não viviam como dois pombinhos. Quando finalmente chegou o dia de voltarmos para a França, minha mãe ligou para saber se estávamos bem. Disse que ela e meus avós estavam morrendo de saudades de nós, que ela chorava todos os dias, que não queria comer, que estar longe de nós era um sofrimento, e que nunca mais nos separaríamos nesta vida. Foi um chororô desgraçado. Eu não aguentava mais aquele inferno, queria chegar logo em casa.

 

Depois do nosso retorno, o pai ainda preparou feijoada para nós algumas vezes, mas meus avós disseram que aquilo era comida de escravo, de gente pobre, que era um absurdo terem dado aquilo para a gente comer. Nossas roupas novas foram jogadas fora, pois podiam ter carrapatos. Certamente tinham, e isso devia ser a causa da doença que eu tivera lá no Rio. Disseram que a Ana era como um cuco, que rouba o ninho dos outros passarinhos, pois tem preguiça de fazer o seu. 

 

Cada vez que meu pai ia nos buscar nos fins de semana, tinha muito bate-boca, diziam que ele agora gastava todo o seu dinheiro com aquela mulher, que ele não dava mais atenção às filhas. Com o tempo fomos deixando de ouvir falar nela. Mas e agora? O que essa desgraçada está fazendo na França novamente? E por que ela está toda sorridente querendo falar comigo? Xô cuco!

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Tags: cucodestruidora de laresfilhosdivórcio

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