Um raio de esperança à sombra dos Dragoeiros (Brava Gente Açoriana I)
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Já é meados de setembro, quando Francisco de Bettencourt de Vasconcelos chega à Ilha de Picos, nos Açores. Ele vem supervisionar o trabalho do feitor das terras de seu pai durante a vindima para se assegurar de que tudo dê certo. Francisco e sua família pertencem a uma das linhagens nobres que habitam em Faial e enriqueceram às custas da exportação de vinho para os britânicos. Seu pai, o 1˚ Visconde da Praia, é um dos maiores produtores de vinhos brancos finos da Freguesia de São Mateus, situado na encosta sul da ilha de Picos. Contudo, Francisco, seu terceiro filho, está destinado à viver na pobreza a partir do dia em que sair da casa de seu pai, pois, como reza a tradição, não terá direito à herança de seu pai.
Francisco é um rapaz espadaúdo e sempre elegante, que faz sucesso com as raparigas da ilha. Porém tal elegância lhe saiu caro, pois ele contraiu uma dívida elevada com seu alfaiate em Faial. Ultimamente isto tem lhe custado noites de sono, pois Francisco não sabe de onde tirar o dinheiro necessário para saldar esta dívida. Suas únicas posses são um anel de brilhantes o par de brincos que pertencem ao conjunto. Estas jóias foram dadas em segredo por sua mãe, para que ele um dia tenha como presentear sua futura noiva. Francisco, todos na família sabem, terá de abandonar a casa paterna em breve e lutar pela própria vida. Seu irmão se diverte em provocá-lo dizendo que ele faria bem em jogar seu charme para uma das filhas das famílias de comerciantes ricos mas sem estirpe que moram em Faial. Mas Francisco é um rapaz sonhador, que sonha em se aventurar pelo mundo, e uma esposa seria um estorvo neste caso.
Neste ano a vindima será tarde. A culpa é do tempo aqui nas ilhas, pois neste ano o verão se fez mais tarde do que nos anos anteriores. Para Francisco, esta vinda a Picos é puro prazer. Ele ama a beleza selvagem desta ilha vulcânica, onde as encostas são cobertas de cordas de lava fossilizada, que descem desde o pico do vulcão lá no alto e se consolidam formando o basalto negro que reveste quase toda a ilha. Os moradores mais velhos da ilha ainda se lembram da última explosão vulcânica, que ocorreu em 1718, apenas 30 anos atrás. Esta explosão destruiu os diversos vinhedos de verdelho espalhados pela ilha e cobriu quase tudo de lava derretida. Hoje vivem aqui pouco mais de 17 mil almas, quase todos são peões, gente brava e generosa, como o vinho que produzem.
A vindima somente começará amanhã. Francisco decide então aproveitar o dia de folga para subir até o cume do Piquinho, a mais de 2000m de altitude, para poder admirar a vista lá do alto. Ele convida Manuel, o feitor das terras de seu pai, para ir junto. Os dois são amigos de infância e brincavam juntos soltos pela ilha durante as épocas em que seu pai se mudava com toda a sua família para Picos nos finais de verão. Eles iniciam a subida da montanha ao clarear do dia, para aproveitar a hora mais fresca. A caminhada é árdua, mas, quando eles chegam lá no alto, a vista que eles têm da ilha faz com que todo o esforço tenha valido à pena. A Montanha do Pico, que domina imponente boa parte da ilha, agora jaz a seus pés. Ali o ar é fresco e saturado de vapores de enxofre que escapam do cume de tempos em tempos. Enquanto descansam, os dois admiram as terras do concelho de Madalena, voltadas para a ilha de Faial, toda dividida em quadrículas de pedra basalto empilhada, formando muros baixos que cercam os vinhedos, protegendo-o do vento inclemente que sopra do mar.
Enquanto Francisco admira o sol refletido no mar como em um espelho, Manuel se queixa do trabalho penoso que ele e os peões realizam nas vinhas, que praticamente brotam da rocha. “Francisco, você bem sabe que para cada muda de parreira plantada, temos de abrir um buraco na rocha à golpes de picão e preenchê-lo com um punhado de terra trazido de barco desde Faial. Isto é trabalho escravo, que somente os negros deveriam fazer. Sem o nosso trabalho exaustivo, não haveria os vinhedos nem a riqueza do seu pai, só haveria Dragoeiros nesta ilha. Porém, estamos quase todos morrendo de fome devido às secas. Por favor peça a seu pai para fazer algo por nós!”. Insensível às demandas de Manuel, Francisco se irrita com a sua defesa do trabalho escravo. “Como pode alguém que quase não tem onde cair morto querer defender o trabalho escravo? E depois se dizem cristãos! Mas o próprio papa Bento XIV pediu ao rei D. João que acabasse com a escravatura nas colônias há alguns anos atrás! Quantos anos mais vamos ter de aturar esta vergonha?”, ele pensa consigo mesmo enquanto se levanta e começa a sacudir suas roupas, em um sinal evidente de que já é hora de começarem a descida. “Senta, homem. Eu ainda estou sem fôlego. Além do mais, gostaria de falar com você sobre a produção de vinho”. “Que foi?”, responde Francisco. “Acho que este ano a produção de vinho não será tão boa. Talvez possamos chegar a no máximo 5000 pipas de vinho, a metade do que produzimos nos anos anteriores. Isto é culpa da seca, que está castigando as ilhas neste ano. Além disto está começando a faltar mão de obra. Os picoeiros estão fugindo da fome embarcando nas galeras em direção ao Brasil”.
Francisco então observa que vários dos currais de pedra estão abandonados. As videiras ali plantadas estão secas, retorcidas, à beira da morte. Com um suspiro de indiferença, ele se volta para o amigo. “Você vai ter de tratar disto com meu pai, pois eu decidi migrar para o Brasil em busca do ouro. Aqui não há mais nada para mim”. Enquanto fala, Francisco começa a desembrulhar seu farnel, ante os olhos assombrados de Manuel. Há quanto tempo ele não via delícias como essas para se regalar? Tudo o que Manuel tem conseguido arrumar para alimentar ele e seus pais nestes últimos tempos são raízes, frutos e flor de giesta. Mas ali, a sua frente, Francisco vai colocando sobre a pedra de modo descuidado uma bexiga de porco cheia de vinho de verdelha da safra anterior, uma linguiça cheirosa, um belo naco de queijo curado e rosquilhas, que ele trouxe da despensa de seu pai.
Francisco se levanta e sai carregando o vinho em suas mãos. Ele contorna o cume por alguns metros e se põem a contemplar o rola-pipas, um caminho estreito escavado na rocha, por onde as pipas de vinho descem rolando a encosta do morro, para serem embarcadas nos navios mercantes. Aquele caminho estreito será a sua porta de saída para desbravar o mundo à bordo de uma galera! Os governadores da região das ilhas, que no momento enfrenta a superpopulação e a fome, prometem a todos aqueles que emigrarem para o Brasil a chance de enriquecerem na terra prometida. Ultimamente, Francisco, como tantos outros, reza todas as noites para que a coroa lhe autorize logo a migrar para a colônia, onde um futuro luminoso lhe aguarda. Além do ouro, Francisco sabe que há o pau-brasil e muita terra fértil para ser cultivada naquelas bandas.
Manuel se aproxima silenciosamente, temendo perturbar seu amigo que está absorto em seus pensamentos. Mas Francisco sai de seu transe e lhe pergunta: “A quanto tempo não tomamos banho naquele lago? Poderíamos passar lá uma destas tardes de fim de verão, quando a vindima chegar ao final. Esta seria uma boa lembrança para eu carregar no coração e rememorar nos dias em que a saudade for demasiada”. Em seguida, os dois amigos empreendem o caminho de volta. Vão um pouco taciturnos, pois sabem que os novos tempos são tempos de mudanças e que eles talvez não voltem a se encontrar no futuro.
Quando eles finalmente retornam à casa do senhorio, já vai tarde e os últimos raios de sol filtram pelas copas frondosas do bosque de dragoeiros situado ao lado da casa. Um grupo de rapazotes muito magros e maltrapilhos trabalha nos troncos rugosos destas árvores extraindo sua seiva cor de sangue, o sangue-do-dragão, que será depois exportada para o fabrico de remédios e tinturas. Exaustos, os dois rapazes se sentam à sombra dos dragoeiros e admiram o pico envolto em névoas, de onde eles acabaram de descer, quando são subitamente surpreendidos pela irmã mais nova de Francisco, que corre excitada na direção deles, com uma carta nas mãos. “Irmão, você acaba de receber uma carta do rei D. João V, o Magnânimo!”. E com um floreio e um grande sorriso nos lábios, elas entrega a tão esperada resposta a seu irmão.
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