Um assistente de cozinha superdotado
De pé sobre uma cadeira ao lado do fogão, Vicente acompanha, com uma dedicação quase religiosa, a preparação dos bolinhos de batata. Ele está usando a gravata borboleta que ganhou de seu pai há duas semanas, no seu aniversário de oito anos. Desde então, ele nunca mais a tirou.
- Vicente, você já assistiu tantas vezes eu preparar esses bolinhos, que se eu deixasse você saberia preparar eles sozinho, né?
O garoto, que já conhecia o processo de preparação de cor e salteado, repete a velha receita de família para a sua mãe:
- rale 2 batatas cruas de tamanho médio sob a água corrente para que ela não escureça, coloca a batata ralada dentro de um pano e aperta bem sobre uma xícara para retirar o excesso de água. Deixa esta água parada por um pouco de tempo até que comece a separar uma fase mais densa no fundo da xícara, é o amido da batata. Jogue fora a parte clara do líquido e junte o amido à batata ralada;
- adicione meia cebola crua ralada, 1 ovo levemente batido, noz moscada ralada, sal e pimenta à gosto.
- com o auxílio de uma colher, jogue essa mistura em uma frigideira com óleo bem quente até que os bolinhos achatados fiquem com uma cor acastanhada.
- Sirva os bolinhos salpicados com salsinha picada.
Ela olha para Vicente brevemente, com um sorriso nos lábios, enquanto continua jogando a massa de batata às colheradas no óleo de fritura e recolhendo os bolinhos que já estão fritos para o prato recoberto de papel absorvente. Ela adora ter companhia enquanto prepara o almoço, e considera preciosos estes momentos em que os dois estão juntos na cozinha. Eles deveriam cozinhar juntos mais vezes. Quem sabe ela até poderia transformar isto em uma rotina e deixar de encomendar as refeições pelo ifood, afinal de contas sai caro e não é lá muito saudável.
- Não, mãe, ainda não tá bom. É preciso deixar que a reação de Maillard entre aminoácidos e açúcares ocorra para que os bolinhos fiquem em um tom acastanhado, para isto a temperatura do óleo deve estar acima de 170 graus Celsius.
Interrompida em seu devaneio pelo tom professoral do filho, ela se dá conta de que ele mais uma vez está criticando as coisas que ela faz. Como pode ele, aos oito anos de idade, pretender saber mais do que ela que já está chegando aos 40?
- Por que você não desce e vai brincar no play com os outros meninos? Cozinha é um lugar perigoso! Você já imaginou se esta frigideira cheia de óleo fervente vira? Nós dois vamos parar no hospital.
- É que na semana passada, os bolinhos ficaram meio crus. Eu tenho de ficar aqui para te ajudar a fritar no ponto certo.
Anna tenta acalmar a onda de angústia que crava as unhas em seu peito. Ela fecha os olhos, respira fundo e luta para se concentrar na própria respiração. Em pouco tempo, ela se sente transportada ao fundo do mar, a 20m de profundidade. Quando se dá conta da sua respiração acelerada, ela pensa “Preciso economizar ar-comprimido”, e se força a respirar de modo compassado. Em breve ela escuta o fluxo ritmado das bolhas de ar saindo pela válvula presa a sua boca e sua pulsação volta ao normal.
- Mami
Ela abre os olhos e se vira para Vicente.
- Que foi meu filho?
- Tá queimando.
-Droga - ela grita, jogando a última leva de bolinhos no lixo e abandonando a frigideira cheia de óleo dentro da pia.
A porta do quarto de sua mãe está fechada há algumas horas, desde que os bolinhos se queimaram, e de lá de dentro não vem um som. Mas agora já são quase cinco horas da tarde e a barriga de Vicente ronca. Tudo o que ele comeu durante o dia foi biscoito e iogurte. Ele resolve então verificar se sua mãe está bem. Pela porta entreaberta ele a vê deitada de lado na cama, inerte, os olhos refletindo o brilho do sol poente que invade pela janela.
- Mami
Como ela não reage ao chamado de seu filho, ele se deita na cama aninhado à sua frente e, delicadamente puxa um dos braços dela sobre o seu corpo. Lentamente, o calor que irradia do corpo dele parece trazê-la de volta à vida. Ela então estreita seu filho nos braços e começa a falar em tom quase inaudível:
- Você sabia que quem cuidava de mim a maior parte do tempo era minha vó? Eu somente voltava para casa para dormir. O resto do tempo eu estava na casa dela, ou na escola. Ela me chamava de “kartofflepuffer”, de tanto que eu gostava de comer bolinhos de batata. Com ela eu também aprendi a fazer tricô, e, enquanto ela fazia blusões para mim e para minha mãe, eu fazia roupinhas para minhas bonecas Suzi. Nós éramos super companheiras!
Quando eu engravidei, imaginei que dali por diante eu sempre teria a companhia de que alguém parecido comigo. Mas nasceu uma traça de livro. Por que você é assim? Está sempre falando de coisas esquisitas pelas quais a maior parte das pessoas não se interessa... Por que você não pode ser como qualquer outra criança normal?
-Desculpa Mami
Vendo que a mãe não pretende levantar-se tão cedo, ele resolve partir à caça de um novo pacote de biscoitos. Deve haver mais um em algum lugar da casa. Mas ao vê-lo se mexer, sua mãe suplica em um lamúrio:
- Vicente, me conta uma história para me distrair? Mas escolhe uma que não seja sobre a extinção dos dinossauros nem sobre o Big Bang, tá bem meu querido?
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