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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Siricutico

amigas bridam com tacas de champanhe

 

Ana chegou enfim à idade inimaginável de 75 anos. Na manhã do dia do seu aniversário, ela se admira no espelho do banheiro. Palmilha cada centímetro quadrado do rosto: as manchas senis, as rugas, o cabelo pintado de louro médio, que ela resiste em deixar de pintar como tantas de suas amigas estão fazendo. Examina o rosto judiado por uma vida sem a devida vaidade. Nunca gostou de passar cremes, ou de ir a esteticistas. Agora ela recolhe os resultados desta falta de cuidados com ela mesma. Suas amigas estão tão bem! Só Glória desmerece o nome. Logo mais tarde elas chegarão para o almoço de aniversário que ela está oferecendo às amigas. Com certeza vão exclamar cheias de falsidade, dizendo que ela está bem, que nenhuma delas daria mais do que 60 anos à Ana...

 Após alguns minutos apalpando o próprio rosto, pescoço, colo e braços, ela finalmente vira as costas à esta imagem que não tem nada a ver com a sua alma juvenil. A alma continua cheia de ilusões. Ainda ontem, Ana olhou no Facebook para ver se encontrava seus antigos namorados e paixões não correspondidas. Com um pouco de paciência e muita habilidade investigativa, ela foi encontrando um a um. Aqueles que não tinham Facebook, apareciam nas fotografias publicadas pelos seus familiares nas festas de Natal, almoços de Páscoa, batizados. A maior parte deles estavam em pior estado do que Ana, o que não deixou de causar uma estranha satisfação nela. Barrigudos, carecas, com ar deprimido, alguns eternamente vestidos como quem está pronto para sair para trabalhar. “Cruz credo”.

 “Que mistério será este, que a maior parte dos homens trabalha até quase cair duro, como se não merecesse descansar e aproveitar a vida sem a rotina esmagadora do trabalho? Ou como se não tivesse o desejo de desenvolver outras habilidades para as quais nunca teve tempo?”. Ana desliga o computador e vai à cozinha perguntar como andam os arranjos para o almoço. É preciso ocupar a mente para não ficar deprimida por ter atingido a marca dos 75. “Até parece que de ontem para hoje algo mudou!”, ela resmunga enquanto prova o molho da carne que Berenice prepara com maestria desde que que foi trabalhar para ela, há exatos 35 anos. “Que foi, Dna. Ana? Tá salgado?”. “Não, nada. Eu tava aqui pensando alto. É que está me batendo o desespero por ter feito 75 anos.”. “Que é isso, Dna. Ana. A senhora está ótima. E ontem tava tão feliz! Fazia tempo que eu não via a senhora daquele jeito...”

 É verdade. Ontem ela tinha ‘75 anos – 1 dia’ e tudo era diferente. Além disso, falar com Alberto tinha sido tão bom! Bem, pelo menos até a hora em que ele dissera que estava doente, fazendo radioterapia. Que mundo injusto! Uma pessoa como ele, que tem um bom humor inabalável, é culto e tem bom papo, e que, depois de se aposentar, resolveu desbravar o mundo jamais deveria adoecer. Depois dessa notícia, ela tinha resolvido parar de pesquisar sobre a vida dos seus ex. Mas ainda tinha Gilberto, de quem ela nunca mais tinha ouvido falar até ontem. Este tinha desaparecido do seu grupo de amigos. A última notícia que ela havia recebido dele era de que, após a separação deles, ele tinha começado a se drogar. Maria disse ter visto ele um dia, na companhia de uma nova namorada, que ela não conhecia. Quando os três se encontraram na porta do cinema, ambos abraçaram ela proclamando em altos brados e com um sorriso de pasta de dente “Jesus te ama!”. Ela disse que eles pareciam iluminados por um fervor recém-descoberto, e que ela tinha ficado ali pensando quanto tempo aquela verve religiosa iria durar. Gilberto era conhecido no grupo por não se dedicar muito tempo à nada, nem à ninguém. “Hum, ‘Jesus te ama!’. Bom, pelo menos Jesus, né? Já que ele não tinha demonstrado o menor amor por ela quando ela tinha descoberto que estava grávida... Ainda custo a crer no que descobri ontem no YouTube: um rapaz que era tão cheio de vida e de amigos, e que fazia tanto sucesso com as garotas com os seus cachos dourados e seu violão embaixo do braço tinha virado um pastor opaco e cheio de pose, lá no alto do seu palquinho. Como será que ele lida com a própria consciência?”

 E o Carlos? Aquele guri era um fofo. No breve tempo que ele fizera parte do grupo, tinha jogado charme para cima de todas as meninas, uma de cada vez, com elegância e dedicação. Tinha o olhar doce de um filhote de cãozinho, como se dissesse “Me leva pra casa”. Será que ele namorou alguma do grupo? Me lembro de que o pai dele era faroleiro, e morava na companhia do vento, em seu farol lá nos confins do Rio Grande. A história dele mais parecia um romance. Sua mãe tinha descoberto que estava grávida no breve tempo em que fora viver com seu pai lá no farol. Como a vida no isolamento do farol era difícil e o seu novo companheiro era depressivo e ensimesmado, ela havia decidido abortar. No dia em que o barco que levava mantimentos e combustível ao farol passou para entregar os produtos, ela pegou carona para ir ao médico do vilarejo mais próximo. Um mês após ter feito o aborto, ela descobrira que ainda estava grávida. O médico não havia percebido que ela estava grávida de gêmeos, e havia retirado apenas um feto. Carlos lutou a vida toda contra o sentimento de ser um filho rejeitado, o que sua mãe tinha dificuldade em disfarçar. Cada nova mulher que ele conhecia, era uma nova chance de redenção, mas ele estava destinado a passar a vida em uma eterna procura por ser aceito e amado.

 “Dna. Ana, suas amigas estão chegando!”. “Cruzes, Berenice, perdi a noção do tempo. Vem cá rapidinho me ajudar a fechar o zíper do meu vestido. Enquanto eu me pinto, recebe elas e serve um refrigerante”. Meia hora mais tarde, quando Ana enfim desistiu de tentar disfarçar as rugas com a maquiagem, ela se perfumou e foi para a sala encontrar suas convidadas. “Ana, que linda! Nem parece que está fazendo 75 anos! Você não envelheceu nada desde que te conheci”, diz Raquel, a mais vaidosa do grupo. “Sei, sei”, responde ela, enquanto sorri para disfarçar um princípio de mau-humor que insiste em aflorar. “Ai, meninas, ontem me deu um siricutico, e desde então eu passei o tempo todo pesquisando na internet sobre os caras por quem já me interessei nesta vida”. “Ih! Isso me dá quase todo mês, mas passa logo, depois que eu descubro o estado de abandono em que eles estão”, replica Nair, com sua voz calorosa e seu jeito expansivo, e todas caem na gargalhada. 

 “Mas o que é isso, Berenice, você ainda não trouxe as bebidas para elas?”. “Não briga com a coitada da Berenice, Ana. É que nenhuma de nós bebe refrigerante, e você já devia saber disso depois de tantos anos de amizade... Berenice, traz por favor umas taças e aquele champanhe que eu te pedi para botar no freezer quando cheguei e que já deve estar bem geladinho.”. Ana finalmente relaxa e recupera seu bom humor vendo as amigas erguerem as taças e lhe desejarem “Feliz Aniversário” em uníssono.

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Tags: 75 anosaniversarioenvelhecerlembranças da mocidade

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