Rumo ao meu destino sobre as asas de um condor
Eu tinha 35 anos e dois filhos adolescentes quando me separei. Mulher bonita, da boca carnuda e personalidade efervescente, nunca faltou homem que mostrasse interesse em mim. Àquela altura, minha vida se enchia de promessas, livre do eterno jugo paterno e das críticas destrutivas de meu marido, eu enfim poderia mostrar ao mundo todas as facetas do meu ser e achar um companheiro sob medida. Vivi, viajei, namorei, experimentei tudo a que tinha direito, mas a vida passou e o futuro prometido nunca chegou. Aliás, eu descobri que, assim como aconteceu comigo, acontece com a maioria das pessoas: o futuro nunca chega, a gente apenas se satisfaz com um projeto inacabado de vida, concebido para outro cliente e que foi entregue por engano na porta de nossa casa. Sem chance de devolução.
Que foi? Você está pensando “Cadê aquela personalidade efervescente de que você falou?”, não é? Pois eu te digo que ela está aqui comigo, nunca me abandonou. Mas quem liga para a efervescência de uma mulher de mais de 60 anos? “Idosa? Sua fila é aquela lá”, e você é logo despachada para longe, pois velhice é uma doença contagiosa, ninguém te quer por perto. Para que minhas borbulhas aflorem, é preciso que alguém me olhe com atenção, de perto, viu?
Assim eu estava, aos 66 anos, me sentindo excluída da festa da vida. Passava meu tempo analisando as diversas possibilidades que surgiam, e a personalidade de cada uma das pessoas que se aproximava de mim. Usava todo o conhecimento adquirido nestes longos anos, para não repetir eternamente os mesmos erros na roda da vida. O meu dia a dia tinha adquirido um viés científico, cheio de métodos e hipóteses. Resolvi então me jogar em uma aventura antes que fosse tarde demais. Presa de um impulso, comprei uma excursão para os Andes. Contudo, minha aposentadoria como professora do estado não seria suficiente para pagar tamanho luxo. Resolvi então vender algumas jóias de família, e com roupas de trekking emprestadas e um cajado telescópico de última geração, parti em direção à Bolívia e o Peru. Minha viagem incluía uma visita ao Machu Pichu. Nada poderia ser mais emocionante!
Começamos a viagem por La Paz. Em seguida fomos a Sucre, Arica e Arequipa, e finalmente chegamos a Cusco, no Peru. A viagem estava fantástica. Longe de ser um cenário bonito, todo pensado para agradar o turista, como são as capitais européias e americanas, as cidades que visitamos eram produto de uma cultura muito singular e antiga, e haviam crescido desordenadamente. Elas exibiam uma beleza verdadeira. Minhas colegas de viagem, todas gaúchas e com mais ou menos a mesma idade, tinham muitas histórias em comum. Conversar com elas era viciante. Os jantares, regados a cerveja Paceña e Cristal, eram intermináveis. Fiz boas amizades naquele grupo.
Um dia nossa guia, uma conhecida minha de longa data, propôs “Quem quer participar de uma cerimônia xamânica aqui em Cusco?”. A maioria disse que “Não, obrigada”. Tinham medo do que poderia acontecer. Haviam ouvido falar que estas cerimônias incluíam o consumo de Ayuhuasca, vômito e diarréia. Um horror! Mas eu, que estava ali para o que desse e viesse, levantei acanhada o meu dedinho. “Não tenho medo dessas coisas”, disse, me agitando na cadeira, cheia de falsa bravura, como um galinho garnizé.
No dia seguinte, logo após uma ceia leve, fomos à casa do xamã, nos arrabaldes de Cusco. Sua mulher nos abriu a porta muito educadamente e nos disse para nos instalarmos na peça central da casa, para onde todas as demais convergiam. A peça era muito simples, mas imponente. As paredes eram cobertas do teto ao piso por pinturas belíssimas de animais. Alguém devia ser artista na família! Nas poucas prateleiras que havia, notei muitos livros sobre o xamanismo, os animais de poder, e relatos dos efeitos curativos desta cerimônia. Havia até mesmo algumas teses de mestrado sobre o assunto. O xamã era um estudioso. Num canto, enfiados em um cesto de palha, havia um conjunto de posters com imagens semelhantes àquelas pintadas nas paredes que estavam à venda. Observando com atenção a assinatura do autor dos posters, descobri que o artista era seu filho.
Os homens da comunidade local que ali estavam reunidos quando chegamos, logo se despediram cerimoniosamente e foram embora. Nós então nos sentamos sobre o tapete gasto que cobria as tábuas do piso, e nos encostamos confortavelmente na parede. O xamã nos alertou que “o melhor é que vocês não se deitem, pois podem acabar dormindo e perdendo a cerimônia”. Em seguida ele falou sobre o ritual que iria realizar. Nos disse que alguns de nós poderíamos ter experiências inusitadas, mas que deveríamos vivenciá-las sem medo. Sem mais delongas, ele iniciou a cerimônia.
No início o xamã nos disse que relaxássemos e respirássemos profundamente. A seguir, ele solicitou que tomássemos consciência de todo o nosso corpo, dos pés à cabeça, e que então deixássemos a gravidade agir sobre o nosso corpo, puxando-o em direção à terra, tornando nossos membros pesados. Por fim, iniciou então uma cantoria acompanhada de batidas de tambor no compasso das batidas do coração. Esse ritmo universal imediatamente fez com que todos nós que participávamos da cerimônia nos conectássemos como companheiros de jornada espiritual. De súbito, todos os sons cessaram e nossa atenção se voltou para uma pena imensa que ele agitava rapidamente, gerando um zumbido no ar. Zzz Zzz Zzz Zzz Zzz. Nisso meus olhos se fecharam, sob o peso das pálpebras.
Quando o zumbido enfim cessou e meus olhos voltaram a se abrir, eu planava a uma altitude de mais de 4000m! Minhas asas imensas e negras permaneciam estáticas, sem a menor necessidade de fazer esforço para manter a altitude. A passagem do vento pelas penas acinzentadas de suas bordas emitia o mesmo zumbido de antes, criado pelo xamã. Um voo calmo, tranquilo, que me permitia analisar com vagar todos os detalhes do terreno antes de escolher o melhor caminho a tomar. O ar cristalino das montanhas me permitia ver a quilômetros de distância. Sob mim se estendiam campinas com arbustos baixos e pequenas presas que se deslocavam aqui e acolá. O sol iluminava as penas do meu dorso, que refletia um brilho metálico. Eu me sentia invadida por uma sensação agradável de paz e um sentimento de proteção. Eu estava no meu elemento!
Respirei fundo, enchendo todo o meu peito com o ar frio e puro das elevadas altitudes. Nesse momento, os meus olhos voltaram a se fechar, e lentamente, o zumbido em minhas penas cessou, a infinidade de sensações que havia se apoderado dos meus sentidos se esvaneceu. A cerimônia tinha chegado ao fim. Aos poucos todas as pessoas presentes foram abrindo os olhos. Alguns, visivelmente atordoados. O xamã começou então a nos convidar a contar aos demais aquilo que havíamos vivenciados. A maior parte não teve coragem de compartilhar as suas experiências, mas os que o fizeram, contaram histórias muito diferentes daquela que eu tinha vivido. Confesso que não acreditei em quase nada do que ouvi. Quando chegou a minha vez, permaneci muda. Por que compartilhar uma experiência tão linda e gratificante com pessoas que pareciam ter contado histórias fantasiosas com o único intuito de impressionar os demais? Aquela história era minha somente, e de mais ninguém.
Ao sairmos, o xamã me puxou de lado, sua mão quente e seca segurando com firmeza o meu braço. Com seus olhos fixos nos meus, ele me explicou que o condor era meu animal de poder, meu totem. Que ele estava sempre ao meu lado, um espírito da natureza que agia como meu protetor pessoal. Disse ainda que essa parceria me conferia uma ferocidade oculta, intuída por poucos. Saí de lá disposta a disfrutar da proteção do meu totem e da minha intuição na escolha dos caminhos que eu viria a trilhar nesta vida. Afinal, nunca é tarde para chegar ao seu destino.
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