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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Rumo à terra prometida (Brava Gente Açoriana II)

 

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Francisco afinal recebia a tão esperada carta-resposta do rei à sua solicitação de permissão para migrar para o Brasil. Ele sonhava em se juntar à corrida do ouro, na qual tantos portugueses já tinham feito fortuna. Para isso, ele deveria se instalar em uma das colônias portuguesas já bem estabelecidas no norte ou no sudeste do país. Contudo, o rei, sob orientação do Marquês do Pombal, havia decidido que as novas levas de emigrantes portugueses deveriam ser assentadas no Desterro* e na Província do Rio Grande de São Pedro, de modo a assegurar que a região sul do Brasil permanecesse sob o domínio português. Isso ocorreu, pois a Espanha vinha ameaçando ultrapassar o limite natural imposto pelo Rio da Prata, considerado a fronteira sul da colônia portuguesa, e ocupar as terras despovoadas do Rio Grande. O envio dos açorianos para o Brasil contribuiria também para diminuir a revolta dos ilhéus, abandonados à miséria e à fome decorrente das recentes secas e catástrofes tectônicas que assolavam os Açores.

Na carta enviada, D. João IV estipulava que Francisco iria emigrar para o Desterro e que sua partida deveria ocorrer até outubro de 1748, de modo a aproveitar a época dos ventos favoráveis à navegação no oceano Atlântico e o maior interesse dos colonos em migrar ao final da temporada das colheitas. Francisco, que mal sabia ler e escrever e não era chegado aos estudos, não tinha ideia de onde se situava o Desterro, ou quais eram as atividades econômicas mais importantes naquela região. Mas a sua necessidade de mudanças era tão grande, que a reposta do rei lhe encheu de emoção e esperança. Sua irmã mais nova, Manuel e seu pai, que apareceu no pátio atraído pela gritaria de Francisco, ficaram estarrecidos. O pai não tinha a menor ideia dos planos do filho caçula de ir para o Brasil.

 

No dia seguinte, quando Manuel chegou à casa senhorial para discutir com Francisco como seriam distribuídos os empregados no primeiro dia da vindima, ele foi surpreendido pelo seu amigo de infância segurando uma trouxa de roupas em seus braços. “Toma, Manuel. Fica com estas roupas. Elas estão em bom estado, mas eu não posso levá-las comigo pois a minha bagagem já está muito volumosa. As demais roupas e calçados e meus apetrechos de barba eu vou vender para poder saldar minhas dívidas antes de partir. A partir de hoje eu serei um distinto gajo barbudo!”.  Os dois caíram na gargalhada, e acabaram trocando abraços e tapas amigáveis nas costas, emocionados com a proximidade das despedidas. Manuel recebeu o seu presente com alegria, pois as suas roupas já estavam em muito mau estado. Na noite anterior Francisco praticamente não tinha dormido. Passara o tempo todo separando seus pertences que levaria ao Brasil e fazendo planos de riqueza para o futuro.

 

Quando o dia da viagem finalmente chegou, Francisco teve de se deslocar para a Freguesia de Horta, na Ilha do Faial. Lá ele iria embarcar na galera que o levaria para o Brasil. Seus pais e sua irmã tomaram o mesmo barco para Horta para estarem presentes no porto na hora das despedidas. Como a viagem era muito perigosa, e o Brasil ficava do outro lado do mundo, eles não sabiam se um dia voltariam a se rever. “Francisco, meu filho, arruma uma boa esposa, filha de portugueses como nós. Dá para ela as joias que te entreguei. Você não sabe como fico triste de saber que não conhecerei meus netos, mas fale sempre de nós para eles e me mande um camafeu com seus retratos pintados quando for possível. Não se esqueça de nunca de nós, pois estaremos sempre pensando em você. Toda noite farei uma prece a Deus, pedindo que você seja feliz, tenha saúde e sucesso em todos os dias da sua vida. Vai com Deus, meu filho”.

 

Francisco finalmente embarcou. Ele se sentia ao mesmo tempo emocionado e temeroso. A galera parecia tão pequena e frágil! Como poderia transportar todas aquelas pessoas durante uma travessia de dois meses? Mas ele ainda poderia se considerar um homem de sorte: como ele era de família nobre, iria compartilhar a cabine com o capitão do navio. Os demais emigrantes e suas trouxas ficariam amontoados em câmaras grandes e abafadas, que não estavam adaptadas para o transporte de passageiros. Esta galera que iria levá-los para a colônia era em geral utilizada para o transporte de cereais, madeira, vinho e outras mercadorias. 

 

A travessia do Atlântico acabou demorando três meses, pois os ventos não foram tão favoráveis quanto o esperado. Neste meio tempo Francisco achou que iria enlouquecer. “Se eu soubesse que a viagem seria assim, eu não teria vindo!”, ele disse para o rapaz que tinha se tornado seu amigo e que passava horas inteiras no convés ao seu lado, se afligindo ante a visão de um mar plácido feito um lago, devido à calmaria. Os demais homens viajavam nas câmaras do porão, deitados lado à lado daqueles que estavam à beira da morte, acometidos de escorbuto ou com infecção intestinal, contraída pela água contaminada e pela falta de higiene no navio. A sujeira e o cheiro do navio eram insuportáveis, pois não havia nem mesmo penicos para que fizessem as suas necessidades. As mulheres e crianças vinham em câmaras separadas dos homens. Para que elas pudessem ver seus maridos ou irmãos era necessário que o capitão do navio autorizasse.

 

Ao final da travessia, uma parte considerável dos passageiros já havia morrido. O capitão pouco se importava com isso, pois o custo do transporte já havia sido pago pela coroa portuguesa por ocasião do embarque dos passageiros, e, quanto maior o número de óbitos, mais espaço havia no navio para aqueles que sobrevivessem. Quando os passageiros começaram a avistar a costa do Brasil e os papagaios-do-mar vieram sobrevoar curiosos o navio, um boato deixou os passageiros desesperados. Tinha começado a circular no navio o rumor de que algumas tripulações costumavam afundar as galeras em que viajavam antes que elas atracassem no porto de destino, com o objetivo de saquear os bens dos passageiros, que carregavam consigo para a colônia tudo o que tivessem de valor. Desesperadas, as mulheres passaram horas a fio costurando suas joias e moedas nas barras das saias, para que ao menos isto não se perdesse. Porém o desembarque foi feito em segurança.

 

Francisco, que era um exímio nadador e um otimista por natureza, considerou toda aquela história de naufrágio uma invencionice de mulheres medrosas. A chegada do navio ao porto do Desterro estava prevista para a manhã do dia seguinte. Naquela noite, Francisco não pode dormir, pois a expectativa era enorme. Quando já era quase de manhãzinha, ele desistiu de tentar conciliar o sono e subiu para o convés. Com os olhos vermelhos pela falta de repouso e com seus dedos firmemente agarrados à balaustrada, ele viu, desde o nascer do sol, cardumes de baleias que desfilavam tranquilas pelo mar ao largo da costa acompanhadas de seus filhotes, enquanto os machos distraíam a atenção dos marinheiros batendo com a cauda na água e formando nuvens de bolhas. Quando os cardumes desapareceram no horizonte, Francisco e seu amigo fecharam os olhos para melhor visualizarem seus sonhos, e exibiram o rosto ao vento morno que soprava do continente para o mar. Em breve eles estariam desembarcando na terra prometida.

 

A confusão no desembarque foi imensa. Os funcionários da coroa vieram solicitar aos imigrantes que tivessem paciência, pois em breve eles estariam sendo enviados para suas novas terras. Além das terras, o rei prometia algumas cabeças de gado, sementes e ferramentas. Mas por hora, alguns deles seriam acomodados nas casas de moradores locais, enquanto a maioria seria reembarcada em um novo navio que partiria no dia seguinte em direção à Província de Rio Grande de São Pedro. A notícia causou revolta entre os portugueses, pois eles estavam exaustos após a longa viagem, e consideravam que uma nova viagem de navio ao Rio Grande significava um risco de vida adicional.

 

Francisco e o outro nobre presente no navio foram rapidamente transportados para as casas de famílias abastadas de origem açoriana e madeirense instaladas na região, que hospedariam com prazer estes visitantes ilustres. Ele então poderia descansar da longa e cansativa viagem que havia feito e se recompor com o auxílio dos cuidados dispensados pelos escravos de seus anfitriões. Além disso, essa temporada seria excelente para que eles aprendessem um pouco sobre a política das colônias e se integrassem na sociedade local. Francisco ficaria hospedado na casa dos Ferreira de Melo, uma família de grande prestígio, originária da Ilha Terceira, nos Açores.

 

Ao chegar ao seu lar temporário, Francisco reparou em uma bela rapariga que o examinava disfarçadamente por detrás de uma cortina rendada. “Mais tarde você vai poder matar a curiosidade sobre este belo espécime recém-chegado da terrinha, minha querida. Por hora eu só quero tomar um bom banho quente, descansar, e vestir roupas limpas”.

 

 

*Desterro era o nome da região onde atualmente existe a cidade de Florianópolis 

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Tags: aventuraviagem de galeraemigraçãocolonias portuguesas

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