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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Quando entra o vento Mistral

O céu escurecia rapidamente. O dia todo tinha estado nublado, mas desde que o vento Mistral entrara, as nuvens que cobriam o céu estavam sendo levadas para longe. Próximo à linha do horizonte à nossa frente, eu via o sol poente se libertar do seu leito de nuvens e espalhar no ar a sua luz dourada. 

Camarga

À hora do almoço, havíamos feito uma parada longa demais e agora corríamos para recuperar o tempo perdido, lutando para que o cair da noite não nos pegasse ainda na estrada. Ficáramos para trás da leva de turistas e ciganos que viajavam para Saintes-Marie-de-la-mer, e, como consequência disso, atravessávamos a planície pantanosa da Camarga sem cruzar com viva alma. 

- Que sorte! A natureza está fazendo um espetáculo privê para nós dois – eu comentei, enquanto admirava maravilhada os bandos de cavalos selvagens que galopavam pela pradaria, enlouquecidos pelo vento que assoviava sem parar. Abri a janela e uma lufada de vento frio e seco invadiu o carro, agitando nossos cabelos e renovando o ar parado e morno que vínhamos respirando. 

- Vai ser uma bela noite enluarada!

- Hum! – ele respondeu, sem demonstrar nenhuma emoção, o olhar fixo na estrada.

De súbito, me dei conta de uma sensação de náusea que me invadia. “Acho que o banquete de frutos do mar e vinho rosé que com o qual nos fartamos no almoço não me fez bem. Deve ser por causa do balanço da estrada”, pensei. 

- Você pode dar uma paradinha na beira da estrada? Eu tô precisando esticar as pernas e respirar um pouco de ar puro - pedi para ele enquanto procurava em minha bolsa um comprimido de Alka-seltzer e a garrafa d’água mineral. Sem dizer uma só palavra, ele parou o carro e pegou o seu celular. Eu desci para caminhar um pouco, na esperança de que o vento e o remédio atenuassem o meu enjôo. 

Os últimos raios de sol desapareciam no horizonte, e a lua se erguia, tímida. A poucos metros do lugar onde eu estava, um belo cavalo branco pastava tranquilo, com a crina se agitando ao vento. Me aproximei lentamente dele, segurando em minha mão estendida a maçã que havia esquecido no bolso do meu casaco. Ele me olhava tranquilo com seus olhos castanhos imensos, mantendo o focinho voltado para baixo, para protegê-lo do vento. Das suas narinas saía um vapor quente que envolveu minhas mãos logo que ele, enfim, abocanhou a maçã cuidadosamente.

Esta noite eu sentia os nervos à flor da pele. Os cavalos, a lua e o vento, tudo isso me trazia à memória minha poesia predileta. Não tenho o hábito de ler poesias, mas El viento en la isla se enraizou em minha alma quando meu corpo foi invadido pelos hormônios na adolescência. Naquele momento, ali à beira da estrada, o vento parecia soprar em meu ouvido os sonetos de Neruda. Na tela da memória eu revia cenas do passado, ao som dos acordes dedilhados por meu primeiro amor em sua viola. 

- Ahh a adolescência ...- murmurei para o potro à minha frente, passando de leve os dedos pelo seu focinho e dorso, que estremecia sob o meu toque. Acordei desse devaneio sentindo o sabor salgado que o vento havia deixado em meus lábios e o frio que atravessava o meu agasalho fino. Iniciei então o caminho de volta em direção ao carro e, olhando através do para-brisa, vi o rosto do meu companheiro iluminado pela luz azulada da tela do celular. “O que será que ele lê tão atentamente?”, pensei.

- Você viu a lua cheia nascendo no horizonte? – perguntei a ele, tentando chamar sua atenção para o mundo real que nos cercava, mas ele não parecia estar interessado. Com evidente má-vontade, ele desligou a tela do celular, o colocou no bolso junto ao peito e religou o motor do carro

- Vamos - ele respondeu. Senão não vamos encontrar ninguém para nos entregar as chaves do Pigeonnier que reservamos para nós.

- Ok - eu respondi, batendo a porta do carro, e ele enfim me dirigiu o olhar, carregado de acusação.

Já eram nove horas quando o sol invadiu a janela do quarto banhando nossa cama com uma poça de luz. Senti o corpo dele mexer-se na cama ao meu lado, ajeitei meus cabelos com os dedos, umedeci os lábios com a língua e me espreguicei, roçando meu corpo no dele. 

- Que delícia esse solzinho matinal – ele comentou antes de virar para o outro lado e puxar o lençol sobre o peito- Pode ir tomar banho primeiro. Acho que vou ficar na cama mais um pouquinho.

Após uma chuveirada rápida, iniciei a preparação do café da manhã e decidi servi-lo na pequena mesa do pátio lá fora, à sombra das oliveiras. Trabalhava concentrada, relembrando nossa estadia aqui na Camarga nos anos anteriores: a cidade cheia de ciganos, músicos e turistas, prestando homenagem às três Marias – Madalena, Salomé e Jacó - e sua escrava Sara, que haviam desembarcado sãs e salvas na enseada do vilarejo, após uma longa fuga dos romanos. Quase sem me dar conta, me pus a assoviar músicas ciganas, somente parando quando percebi que o hóspede da cabana ao lado acompanhava a cena com o olhar levemente jocoso.

- Que graça o nosso pequeno pombal! – disse meu companheiro quando apareceu no pátio, recém-saído do banho.

- Pois é, eu também achei. Mas vem logo para a mesa, que o hoje o dia promete. Nem acredito que afinal chegou o dia da procissão. Eu anseio o ano inteiro por esse dia – respondi, com o coração aos saltos.

O pátio da igreja estava repleto de turistas e cavaleiros ciganos. Estes últimos, vestidos com camisas de seda coloridas e chapéu de feltro negro, aguardavam o início da procissão sentados sobre suas montarias brancas. Entre eles se destacava um cigano de porte mais altivo, vestido com uma camisa preta surrada, o peito enfeitado por correntes de elos grossos. Seu cavalo, mais agitado que os demais, criava uma algazarra com o impacto dos seus cascos nos seixos do calçamento. O cavaleiro, impassível, percorria com o seu olhar atento a multidão que viera homenagear Sara-a-Kali, a santa negra.

A procissão enfim começou, com os ciganos carregando a estátua de sua padroeira sobre os ombros, em direção ao mar. Logo mais chegaria o momento tão esperado por todos, quando as pequenas bancas armadas pelas ruas da cidade serviriam iguarias desta região e, em cada esquina, músicos e artistas mambembes fariam seus shows.

Logo localizei o meu grupo predileto de músicos: todos vestidos de preto e empoeirados, os cabelos longos e rebeldes como se tivessem acabado de desencilhar seus cavalos. Eles tocavam seus instrumentos com uma maestria e vigor de dar inveja a muita orquestra de câmara. A música, que havia iniciado em um compasso doce, logo se tornou ligeira, e o violinista, atracado ao arco do seu violino, agora marcava o ritmo selvagem com batidas do pé. Ali, em meio ao burburinho de seus colegas músicos e de um público animado e numeroso, ele havia aprisionado meu olhar ao seu, como se não houvesse mais ninguém no mundo além de nós dois. Meu Deus!

Chegada a hora do intervalo, o grupo de músicos e o público se dispersaram. Meu companheiro decidiu entrar na fila para comprar uma galette e um copo de cidra, e eu me afastei em direção aos toilettes. No meio do caminho, porém, avistei os trailers dos ciganos e, sentado nos degraus em frente à porta de um deles, o violinista me observava com o seu olhar magnético, em um mudo convite.

- Onde você se meteu? Eu pensei que você tinha se perdido por aí. Entrei na fila do crepe duas vezes e ainda assim tive de te esperar! - perguntou meu companheiro, com a voz aflita.

- Você sabe como é a fila do banheiro feminino, parece que não chega nunca a vez da gente – respondi com a voz mansa e o olhar fugidio.

- Vem, vamos embora – me disse ele enquanto examinava atentamente o meu rosto, e enlaçava meus dedos nos seus, me puxando para perto do seu corpo. Partimos lentamente em direção ao nosso carro, com o sol ainda alto no horizonte e uma brisa ligeira acariciando nossos rostos. 

Para escutar a poesia El viento en la isla, de Pablo Neruda, por favor clique aqui 


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Tags: Saintes-Marie-de-la-merCamargaciganosSara-la-Kalivento Mistral

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