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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Planeta Água

Luísa abriu os olhos e, ao se virar na cama, sentiu o lençol empapado de suor. Que noite! Viu Carlos dormindo solto ao seu lado, e resolveu se levantar de mansinho, para não perturbar o seu sono. O ar parado, abafado, e o zumbido incessante dos mosquitos se combinaram para tornar a noite infernal. Uma noite marcada pela sucessão de longos períodos insones alternados com rápidos cochilos, em um ritmo dissonante com o dos ponteiros do relógio, que pareciam retidos por uma mão sobrenatural. Quando às quatro da manhã ela finalmente decidiu se levantar e escancarar as janelas da sala voltadas para o vale, uma brisa ligeira invadiu a casa, espantando os mosquitos e refrescando o ambiente, permitindo que ela afinal pudesse conciliar o sono. 

cachoeira

Enquanto Luísa lavava o rosto, os sonhos da madrugada lhe voltaram à memória como em um filme. Reviu sua avó e seu pai, que abriam seus braços para ela, em um convite mudo e sorridente. Há quanto tempo não sonhava com eles! 

- Por que será que justo esta noite eles foram aparecer em meu sonho? Deveriam ter vindo em uma noite de sono tranquilo, para termos mais tempo para matar as saudades. – Ela disse para sua imagem no espelho, tentando afastar o mal-estar desencadeado pelo mistério do sonho.

Quando entrou na cozinha, viu a mesa arrumada e o cheirinho de pão fresco saindo do forno, enquanto sua tia se agitava de um lado para o outro preparando o café. Desde que comprara esta casa em Penedo, Luísa seguidamente recebia amigos ou parentes nos fins de semana, mas nem todos eram assim tão gentis. A maior parte deles ficava sentado, esperando um milagre acontecer enquanto ela saía para comprar pão e leite, preparava o café e a janta, varria a casa e limpava os banheiros.

- Bom dia! Mas que cara de preocupação é essa? – perguntou sua tia.

- Não é nada, deve ser por causa da noite maldormida. Nunca imaginei que aqui na Serra também fossem existir noites quentes como a noite passada.

- Deve ser por causa da mudança do clima, do El Niño, ou sabe lá o que mais.

- É, deve ser – Ela respondeu, já desinteressada da conversa, sua atenção agora totalmente voltada para a mesa. – Parece a última refeição de um condenado. Está maravilhosa!

Sua tia riu da observação estapafúrdia, enquanto admirava satisfeita Luíza se servir de pão caseiro, geleia e o queijo da Canastra, que haviam comprado na subida da Serra.

Luísa já havia colocado as toalhas, o protetor solar e os bonés na mochila, junto com os sanduíches para enganar a fome. Vestida com sua roupa de banho ela agora apressava Carlos, que ainda estava sentado à mesa do café da manhã.

- Vamos, antes que comece a chover. O céu está ficando encoberto de nuvens lá para as bandas da cabeceira do rio. Acho que o tempo vai virar. Se a gente se amarrar, vai acabar perdendo a chance de tomar banho de cachoeira.

- Escuta, Luísa, tem uma notícia importante no jornal de Itatiaia. Eles instalaram uma si ...

- Depois você nos conta as notícias. – Ela interrompeu sua tia, enquanto eles saíam correndo porta afora, em direção ao carro.

Quando eles finalmente chegaram ao Rio Campo Belo, viram um grupo grande de turistas espalhados sobre os rochedos que recobriam o leito do rio. Eles todos pareciam se conhecer e faziam um barulho infernal. As crianças passavam correndo pela margem do rio e se lançavam de cabeça no pequeno lago represado na base da cachoeira. Luísa olhava atônita para esta tragédia anunciada, sem saber o que fazer. Praticamente não havia um único lugar desocupado onde ela pudesse abrir sua kanga e se deitar para tomar um sol. 

Enquanto ela largava sua mochila sobre o rochedo mais distante daquela balbúrdia e entrava na água para se refrescar, Carlos decidiu enveredar por um caminhozinho de terra batida que ladeava o rio, entrava na mata e levava ao topo da cachoeira, rio acima. Pouco depois, ela o viu surgir agarrado a um dos rochedos que ladeavam a cachoeira e avançar lentamente até o seu topo. 

Encarapitado lá no alto, ele fez sinal orgulhoso para que ela também subisse. Luísa olhou para um lado e para o outro. O que ela tinha a perder? Nada! Rapidamente ela reuniu todas as suas coisas, as jogou na mochila e enveredou pelo mesmo caminho de terra batida em que ela havia visto Carlos desaparecer mais cedo. Chegando lá no alto, ela reparou que o barulho da cachoeira encobria a gritaria dos turistas, que parecem formigas quando vistos lá do alto. Eles pareciam estar em outro mundo, apenas os dois. Pela primeira vez naquele dia ela se sentia relaxar. Eles estenderam suas kangas sobre o rochedo e se deitaram sob o mormaço. A noite mal dormida rapidamente cobrou o seu preço e eles adormeceram hipnotizados por uma revoada de borboletas amarelas que pairava sobre um pequeno remanso, onde a água se espraiava tranquila.

O tempo virou e um vento começou a soprar lá do alto. Carlos acordou com a impressão de ter ouvido uma sirene ao fundo, mas lá de baixo não se distinguia praticamente nenhum som, pois o barulho da queda d’água parecia ainda mais alto agora que o ar estava saturado de umidade. Ele olhou em direção à cabeceira do rio e reparou que o céu estava negro. De tempos em tempos, um raio atravessava o céu lá longe, mudo. Uma tempestade se aproximava.

- Que bom, o tempo vai refrescar! – ele comentou com Luísa, antes de se deitar sobre um rochedo na beira da cachoeira e espiar lá embaixo.

- Que estranho, já foram todos embora. Se você quiser, já podemos descer.

- Carlos, olha a água do rio. Ela está turva e agora está cheia de folhas e galhos flutuando...

Subitamente eles escutaram um ronco ensurdecedor e sentiram a rocha tremer sob seus pés. Da cabeceira do rio vinha uma cabeça d’água, que avançava selvagemente na direção deles. Paralisada de terror, Luísa fechou os olhos e viu mais uma vez, projetada na tela da sua mente, a imagem de sua avó e seu pai que sorriam para ela de braços abertos. Desta vez, ela escutou nitidamente a voz deles, que diziam:

- Vem, minha filha.

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Tags: cabeça d'águapenedosonhomau presságiocachoeira

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