Loading...

Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

Blog

Veja nossas postagens

Os sábios e o temente

 


Um grupo de dez geólogos havia sido enviado à Hungria para visitar cavernas formadas na rocha em subsuperfície pela passagem de fluidos termais. O grupo era conduzido por um geólogo local, que havia anos dedicava sua vida ao estudo das mais de 200 cavernas que ocorriam em Budapeste e em suas vizinhanças. Eles iriam passar ao todo quatro dias entrando e saindo destas cavernas, fotografando todas as feições interessantes que pudessem encontrar e tendo longas discussões no local sobre as diversas teorias que até o presente explicavam a sua formação. Tudo gente jovem e interessada, que trabalhava junto há muitos anos. Eles vinham paramentados com botas de caminhada, capacete e lanterna de espeleólogo na testa. Em suas mãos seguravam cadernos de campo já cheios de observações feitas durante as visitas do dia anterior.

 “Quem é o capiau?”, perguntou uma das geólogas, de modo discreto, ao colega que estava ao seu lado. Foi quando os demais repararam na presença de um homem desconhecido que havia se inserido entre eles, enquanto esperavam que a entrada na caverna de Pál-völgy fosse acertada com o responsável pelo local. O colega, sem graça, abriu as mãos ao lado do rosto e levantou os ombros, em uma resposta silenciosa, enquanto os demais riam baixinho da crítica ao aspecto simplório do rapaz embutida na pergunta. Marcos, o mais jovem do grupo e conhecido pela sua delicadeza, se aproximou do rapaz e perguntou em inglês se ele também era geólogo.  “Não”, respondeu ele em português, “eu sou o motorista da van que trouxe vocês”. “Aaaaaah”, os demais responderam em coro. E logo choveu uma série de perguntas sobre de onde ele era e o que ele estava fazendo na Hungria.

 

Kázmér tinha nascido em Santa Catarina, filho de descendentes de húngaros. Seus tataravós tinham emigrado da Hungria em meados do século XIX.  Para fugir da miséria, acabaram se instalando no Brasil, ludibriados pelas promessas de vantagens econômicas prometidas por Dom Pedro. Abandonados em terras longínquas, sem ferramentas, ou apoio do governo, lutaram contra a fome e o isolamento. Um século e meio mais tarde, seus descendentes ainda penavam para sobreviver no seu país de adoção, agora afundado em uma recessão econômica. Assim, alguns anos após o ingresso da Hungria na União Européia, Kázmér voltava ao país de origem dos seus antepassados em busca de melhores oportunidades. 

 

No entanto a vida na Hungria também não era fácil para os imigrantes. Neste país, governado pela ultradireita e de tradição católica, Kázmer procurava na religião  a aceitação e o consolo do seu isolamento social. Durante a semana, ele cultivava pimentão vermelho nas terras de seus parentes. Nos fins de semana ele fazia bicos, dirigindo a van de um conhecido. E foi durante um destes bicos que Kázmer solicitou ao coordenador do grupo conhecer com eles a caverna de Pál-völgy, famosa na região pela sua dimensão, pela beleza dos imensos salões de teto abobadado e por suas estalactites e estalagmites. Enquanto o grupo examinava a maquete detalhada da caverna, o rapaz, feliz pela atenção recebida de seus conterrâneos, ia sendo submetido a uma chuva de perguntas.

 

Finalmente o grupo entrou na caverna, descendo uma escada que parecia nunca ter fim. De um total de 31 km de galerias interconectadas, eles iriam visitar apenas uma pequena seção da caverna, constituída de vários andares de túneis e passagens. O interior desta caverna era fresco, as galerias espaçosas e os caminhos bem pavimentados, especialmente preparados para a visita dos turistas. Kázmér, quando se viu confinado neste espaço subterrâneo, ficou extremamente impressionado. Seus lábios, num movimento incessante, iniciaram uma prece quase inaudível, enquanto as contas de um rosário deslizavam entre seus dedos. 

 

O grupo entretido pelas explicações do coordenador, ignorou o que se passava ali entre eles. Quando o professor acabou de dar as explicações, um dos geólogos percebeu o nervosismo de Kázmér e explicou ao rapaz que aquela caverna estava aberta aos turistas há mais de 100 anos e que nunca houvera qualquer problema de desabamento. Ele finalmente pareceu se acalmar. Próximo à hora do almoço, o grupo decidiu voltar para a van, onde Kázmér reassumiu a direção. 

 

À tarde, os geólogos foram visitar uma caverna que não é aberta aos turistas, e que se situa sob as instalações luxuosas das Termas Gellert. Na superfície, há um spa belíssimo, cheio de vitrais Art Nouveau, piscinas em estilo romano com águas quentes e paredes decoradas com pastilhas coloridas. Os clientes desse spa tem direito a tudo do bom e do melhor. Porém, escavado no rochedo sob o spa, há um túnel escuro e desprovido de beleza que conduz à caverna, onde brotam as dezoito fontes de águas termais que alimentam as piscinas aquecidas das Termas Géllert. O túnel mais parecia uma sauna: superquente e cheio de vapor d’água.  À medida que o grupo avançava, o cheiro de enxofre se torna mais e mais insuportável, pois eles se aproximavam de fontes de águas sulfurosas.

 

Quando os geólogos enfim chegaram ao fim do túnel, situado 40m abaixo da superfície, eles ouviram um gemido ensurdecedor. O grupo inteiro se olhou, amedrontado. Kázmér, que vinha tentando se conter até então, se abandonou ao desespero. Ele caiu de joelhos e, aos prantos, pediu a Deus que o perdoasse. “Senhor, eu sei que pequei, mas não acredito que mereça ser jogado no fogo do inferno. Me livre por favor das garras de Lúcifer!”. O coordenador do grupo, atônito com aquela cena, ajoelhou ao seu lado e explicou a ele em húngaro que não havia o que temer. Que aquele barulho era gerado pela passagem do bonde em superfície, e que o calor e o cheiro de enxofre vinham das fontes de águas termais. “Kázmér, se acalme por favor. Vem comigo. Vamos sair daqui. Lá fora está mais fresco, você vai se sentir melhor”.

 

À noite, o grupo foi jantar e beber em um restaurante em Peste, a parte mais nova da cidade. Um deles, já meio tonto de tanto beber cerveja, começou a arremedar o capiau. “Senhor, me perdoe! Me tire deste inferno!”, ele falava rindo, enquanto os demais o olhavam sérios.  "Mas justo você, que foi o que mais se assustou lá na caverna, agora está caçoando do rapaz!", comentou um de seus colegas. Em uma mesa situada um pouco mais adiante, o professor balançava a cabeça desolado, enquanto observava a cena. Com os lábios semicerrados, ele murmurou para si mesmo "O temor do Senhor é o princípio da sabedoria, e a humildade precede a honra (Provérbios 15:33)".

Voltar

Tags: budapesteficçãocavernasfontes termais

Receba os novos contos
em primeira mão