O Mistério das Caturritas
Se você me visse à hora que eu chego na pracinha todas as manhãs, provavelmente pensaria “Ih, lá vem a doida das caturritas.”. Enquanto minha cachorra cheira o poste para saber das novidades de seus amigos caninos, eu cumprimento minhas amigas caturritas empoleiradas no fio de alta tensão lá no alto, ao lado do transformador. Isso faz parte da nossa rotina diária. Desde que elas nos avistam do outro lado da rua, já somos recebidas pelos seus grasnidos de boas-vindas. Especialmente nos dias de sol. Mas nestes dois últimos dias, o silêncio na rua tem sido sepulcral.
O ciclone que passou sobre nossas cabeças há duas noites provocou um estrago tremendo na cidade. O fornecimento de energia elétrica, de água e o trânsito nas ruas ainda não foi normalizado. Desde então, o shopping center situado no meu bairro se tornou um refúgio para uma legião de vítimas do ciclone, instalada por todos os cantos onde há tomadas, especialmente na livraria. As pessoas parecem ter descoberto de súbito um novo amor pela leitura. Enquanto recarregam as baterias dos seus celulares na tomada mais próxima, elas folheiam os últimos lançamentos editoriais.
Esta última tempestade foi assustadora: a chuva acompanhada de ventos de 120 km/h formou uma massa d’água que se deslocava na horizontal, encobrindo por completo a visão daqueles que chegavam à janela para observar a exibição das forças da natureza. A maior parte dos vizinhos prefere não mais se aproximar das janelas, pois, vez ou outra, a força dos ventos rompe as vidraças em mil estilhaços. Além da chuva e dos ventos, desta vez houve também granizo, que provocou um barulho medonho, despertando em quase todos um medo primordial. Nas ruas, várias árvores e postes tombaram.
Os ninhos das caturritas, construídos junto aos transformadores de energia elétrica das redondezas, proporcionando um lar imponente e aquecido durante os rigores do inverno, não resistiram ao vento. Restaram somente uns amontoados murchos de gravetos, desprovidos de vida. Nenhuma cabecinha verde apareceu na porta do ninho para ver o povo passar, ou vir nos receber, nestes dois últimos dias.
Para onde foram as minhas amigas? Antes elas voavam de um lado para o outro, bandos de caturritas espalhafatosas e barulhentas, especialmente à hora do entardecer, quando saíam para comer insetos. Boa parte do charme do bairro se foi junto com elas, agora que os céus estão silenciosos. Restaram apenas as demais espécies de pássaros, com seus piados tímidos e suas cores pardas.
Da estima e interesse destas aves por mim, eu estou certa. Na casa de minha prima tem uma delas, que foi criada em cativeiro, e hoje não sabe viver de outro modo. Um dia ela apareceu faminta, meio depenada. Tinha fugido da gaiola na casa de seu antigo dono e descobriu à duras penas (as dela) que não sabia como viver livre na natureza. Minha prima, uma espécie de Dona Palmira, acolheu a caturrita fujona e a instalou na gaiola da sua antiga calopsita. Em pouco tempo a danada já sabia cantar atirei-o-pau-no-gato, falar as frases mais comuns do dia-a-dia e imitar o riso da minha prima. Já, comigo, foi amor à segunda vista.
No início ela não me dava bola. Só tinha olhos para os da casa. Mas como eu gostava de cantar para ela, ela logo se afeiçoou a mim. Agora, toda vez que me vê, ela me chama. Se não dou bola, ela começa a dançar, em um sinal claro de que espera que eu cante para ela. Se isto também não surte efeito, ela aplica seu golpe de mestre: imita minha cachorra. Este golpe é infalível. Esperta, sociável e manipuladora, ela conhece as fraquezas do meu coração!
Enquanto escrevo este texto, o súbito grasnido de uma delas alegra meu coração. Será possível que a vida esteja voltando à normalidade?
Voltar