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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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O espião que veio do Rio

 

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- A senhora viu a notícia sobre o espião que prenderam no aeroporto de Guarulhos semana passada, dona Ybbi? Ele fazia espionagem pelo mundo afora usando um passaporte brasileiro, mas descobriram que ele era russo. Ele tinha passado uns anos morando no Brasil apenas para criar um disfarce. Diz que o homem dançava até forró!
- Vi sim, Simone. Parece até história de romance de espionagem do Daniel Silva
- Quem é esse?
- É um escritor americano famoso, filho de pais Açorianos, por isso ele tem esse nome. Comecei a ler um livro dele ontem. Que coincidência, né?
- Por que coincidência, dona Ybbi?
- Porque no livro que eu estou lendo tem uns russos que passaram anos morando em outro país para criar um disfarce, antes de se infiltrarem na política e começarem a trabalhar como espiões.
- Essa história do Sergey Cherkasov me lembrou a de um patrão que eu tive há uns anos atrás, antes de começar a trabalhar para a senhora. Gente boa, bonito e simpático, mas tinha algo estranho nele...
- Conta, Simone. Eu adoro histórias de mistério.
- O seu Sérgio era um rapaz bonito e muito respeitador. Ele fazia faculdade de Sociologia na UFRJ, mas não parecia muito interessado em estudar. Ele já era bem mais velho que os seus colegas, mas ainda estava bem longe de se formar. Os colegas dele diziam que ele era um infiltrado do exército, que ele estava ali só para dedurar os estudantes subversivos. Um resquício dos tempos da ditadura no Brasil...
- Como é que você sabe disso, Simone?
- Eu conhecia uma garota que era colega dele na Universidade. Ela dizia que nenhum dos colegas confiava nele, apesar de todo o esforço que ele fazia para se integrar na turma.
- Coitado!
- Coitado nada! Os rapazes não confiavam, mas quanto às meninas que estudavam com ele ... era um desfile de mulher naquele apartamento. Uma pouca vergonha. Ele era um rapaz bonito, lourinho, fazia o maior sucesso com as mulheres. Também gostava muito de dançar, como esse rapaz que foi preso. Teve uma vez que ele contratou uma passista de escola de samba para ensinar ele a sambar dois meses antes do carnaval chegar. Eles passavam as tardes ensaiando na sala de estar da casa dele. Eu achava aquilo muito estranho, porque ele começou a ter aulas de samba bem na época das provas finais da faculdade. Mas isso não parecia preocupar ele. Depois de dois meses de aula com a garota sambista, o requebrado dele continuava tão ruim quanto antes. Além disso, ele havia sido reprovado de novo na maior parte das matérias. 
- Que comédia!
- O desempenho dele só melhorava um pouco nas aulas das sextas-feiras, quando os dois enchiam a cara de vodca antes de encerrarem a aula e irem juntos às rodas de samba em Madureira.
- Eles saíam juntos, é?
- Ah, saíam sim. Ele perdeu a cabeça pela garota, enchia ela de presentes e fazia uma cena danada quando ela não aparecia para dar aula. Mas ela tinha fogo no rabo e era famosa por ser namoradeira lá na comunidade onde eu morava. Aliás, ela era a namorada oficial do traficante que comandava a nossa comunidade, o Zangão.
- Cruzes, Simone.
- Pois é. Teve uma sexta-feira que aconteceu uma coisa estranha. Já era hora de eu ter saído, mas eu ainda estava passando a roupa lá dele no quarto de empregada. Acho que ela não se deu conta de que eu ainda estava no serviço. Eu vi que naquele dia a festa tava boa. Ele tinha bebido muito mais vodca do que o normal e ele acabou caindo no sono lá pelas tantas. Foi então que eu a ouvi abrir a porta para o Zangão entrar.  Enquanto o seu Sérgio dormia, os dois revistaram a casa toda. Eu tive de me esconder no banheiro de empregada, para que eles não me vissem.
- E eles descobriram alguma coisa?
- O Zangão achou uns recibos de operação com bitcoins. Ele disse que o seu Sérgio tinha uma verdadeira fortuna, e que ele era o proprietário do apartamento onde morava. Tudo isso sem trabalhar, só fazendo de conta que estudava.
- Mas ele podia ter recebido uma herança, não podia?
- Difícil. Ele dizia que os pais dele ainda estavam vivos e moravam lá no Espírito Santo. A única coisa que ele dizia ter herdado eram umas facas e armas e um uniforme do Exército Branco, dos tempos em que o vô dele lutava lá na Rússia contra os bolcheviques, antes de ter fugido para o Brasil. Ele me contou essa história com lágrimas nos olhos, num dia em que ele estava mais bêbado do que o normal.
- Ah, então ele era de origem russa?
- Não sei dizer de onde ele era. O Zangão achou três passaportes escondidos sob o parquê do quarto. Num ele era brasileiro e se chamava Sérgio Kittel, no outro ele era ucraniano e no terceiro ele era alemão. Me disseram que Kittel é um sobrenome de origem alemã. Mas acho que ele era russo de verdade, pois, no dia em que ele falou do avô, ele parecia estar falando a verdade.
- E daí? O que aconteceu depois disso?
- Não sei dizer não, senhora. O Zangão e a mulata estavam tão entretidos mexendo na casa do rapaz, que nem viram quando eu escapei. Só sei dizer que quando eu voltei na segunda-feira para trabalhar, já não tinha mais ninguém morando naquele apartamento. O porteiro disse que ele tinha se mudado. Também comentou comigo que o seu Sérgio estava com a cara toda roxa e com o braço engessado quando foi embora. Parecia ter levado uma surra das brabas.
- Que é isso, Simone? Você tá me dizendo que um espião russo de quem a ABIN e a PF nunca tinham ouvido falar foi desmascarado por um traficantezinho de merda e teve de fugir com o rabo entre as pernas?
- É o que parece, não é?
- E você nunca mais ouviu falar dele? Ele nunca te ligou ou escreveu uma carta?
- Claro que não. Quem sou eu para merecer tanta consideração dele. Eu era apenas a empregada doméstica. Mas anos depois, eu vi um homem muito parecido com ele. Era praticamente igual, só que agora estava um pouco mais velho. Eu quase perguntei se ele era o seu Sérgio, mas, quando cheguei perto, ele deu meia volta e desapareceu.
- Não brinca!
- É verdade. Naquela época eu fazia faxina na casa de um diplomata alemão aqui em Brasília. Toda vez que ele fazia uma festa, ele me chamava para ajudar a servir os convidados. Naquele dia, eu estava carregando uma bandeja cheia de taças de champanhe quando vi esse moço. Ele estava muito elegante e charmoso, com seu terno caro e uns fios de cabelo branco. Quando cheguei perto, eu vi que meu patrão o chamava de Mikael e que eles pareciam estar falando em alemão. Quando eu vi que era ele, eu levei um susto tão grande que derrubei parte das taças. Foi uma confusão tremenda! Tive de me abaixar para recolher os cacos, e, quando me virei de novo na direção dele, ele já tinha desaparecido.
- E você perguntou ao seu patrão como este homem se chamava, qual era a sua profissão, ou sua nacionalidade?
- Na semana seguinte, quando eu voltei para fazer faxina na casa do diplomata, a esposa dele estava olhando as fotos da festa na tela do computador. Eu reparei que em todas as fotos em que o seu Sérgio aparecia, ele nunca estava de frente. Ele parecia estar sempre fugindo da câmera. Mesmo assim, dava para reconhecer ele. Quando eu perguntei à minha patroa como ele se chamava, ela me disse que seu nome era Mikael e que ele era um assessor político no consulado alemão. 
- O cara era bom, hem? Já tinha se infiltrado entre os políticos de outro país! Simone, você tem cada história pra contar.
- Ih, seu Sérgio é café pequeno, dona Ybbi. Semana que vem eu conto a história do Zangão. Esse cara é considerado um super-herói lá na comunidade!

 

 

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