Minha aventura com Sueli e os canivetes de pirata
Sobre com um périplo pelas lojas de canivetes do Brasil e da Córsega me ajudaram a fazer uma nova amizade
Como você se chama, meu bem? O que? Sueli?
Da primeira vez que ouvi seu nome, pronunciado com o sibilar de uma lança que corta o ar, pressenti que algo não se encaixava bem nesta moça de aspecto tão cândido que conversava com a garçonete, ocupada em identificar as nossas comandas individuais. Sueli era nova no nosso grupo e raramente sorria. Quando o fazia, era um sorriso frio, que antes mesmo de atingir os olhos, morria nos cantos da boca.
Sueli era carioca, amiga de um amigo meu. Ou ex, sei lá. Ele, porém, nunca ousou dar maiores explicações sobre ela. Quando a situação exigia, ele apenas silenciava feito uma tumba, com o olhar perdido no espaço. Logo alguém mudava de assunto, encabulado. Pra que entristecer Moacir? Ele é um santo rapaz!
Pouco após ter conhecido Sueli no bar, nós duas nos encontramos um dia por acaso no centro do Rio, em frente à loja do Rei das Facas, na rua da Carioca. Ela parecia inebriada defronte a vitrine dos canivetes e facas. As lâminas todas brilhavam bem polidas, arranjadas com arte sobre um papelão verde, já meio amarelado nas bordas. A loja cheirava a abandono, mas os clientes entravam e saiam em um fluxo constante. Só Sueli não se resolvia a entrar. "Bonitas, não?”, eu perguntei. Ela, que tomou um susto ao me ver, me encarou desconfiada e respondeu seca “É”. “Você veio comprar um canivete?”. “Não, tô só olhando”. “Ah”, eu respondi sem jeito, "eu tava indo ali na Vesúvio, comprar um guarda-chuva”. E me despedi. Alguns metros mais adiante, antes de entrar na loja dos guarda-chuvas, parei para dar uma olhadinha. Sueli continuava lá no mesmo lugar, analisando a vitrine com o mesmo ar de abandono de antes. Encolhi os ombros, assim como quem pega uma corrente de ar frio e, já esquecida dos canivetes, concentrei toda a minha atenção na escolha da cor do meu novo guarda-chuva.
Anos depois nos encontramos novamente. Desta vez, encostada na amurada de pedra lá no alto, a caminho da citadela, eu admirava os iates deslumbrantes ancorados na baía de Bonifácio, na Córsega, quando de repente ouvi próximo a mim uma voz conhecida que se apresentava: Je m’apelle Ssssueli. Após as conversinhas de praxe, combinamos de jantar juntas no dia seguinte.
Cheguei cedo ao restaurante, desanimada. Eu planejava ter comprado um canivete para meu amigo francês, que gosta de colher cogumelos no bosque perto de casa. Um daqueles canivetes maravilhosos da cutelaria “Les Terrasses d’Aragon”, situada na rua Doria. Mas após passar meia hora indecisa examinando uma vitrine após a outra até finalmente me decidir por um canivete de cabo de madeira entalhada, e outro tanto tentando atrair a atenção da atendente da loja, saí da loja de bolsos vazios. Tive de me render às evidências: a vendedora, uma mulher muito séria, de tez morena e feições que lembravam as ilustrações de uma história de piratas da minha infância se recusava a me vender o dito canivete. Ao contar esta história para Sueli, um luar de reconhecimento se acendeu em seus olhos. "Amanhã vamos voltar juntas nesta loja para comprar o seu canivete”. Dito e feito. No dia seguinte pela manhã voltamos à loja da rua Doria. Lá chegando, ela me pediu que lhe desse o dinheiro e aguardasse do lado de fora. Assisti embasbacada ela entrar na loja cheia de turistas, ser prontamente atendida e sair com o meu canivete embrulhado na mão em menos de 15 minutos. “Toma”, me disse ela, “a vendedora me falou de um bar que fica em um porão, aqui na cidadela, onde só dá nativo, nada de turistas. Vamos?”
Nesta mesma noite fomos ao bar, eu toda trajada de negro, os olhos fardados de uma sobra preta extravagante e muito khol, e o canivete metido no bolso. Pronta pra conhecer minha nova turma de amigos.
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