Memórias do Czar de Cuiabá
Observo atentamente o rosto de meu amigo, a quem aprendi a amar ao longo de tantos anos de convívio. Alexei é um homem de traços rudes, profundamente castigado por uma vida de aventuras e de adversidades. No meio deste rosto vincado por rugas profundas, vagam dois olhos muito azuis e límpidos, de uma beleza quase infantil. Mas estes olhos não me enganam: Alexei tem uma alma sofrida e densa que se manifesta em seu andar pesado, em sua falta de delicadeza para com as manifestações de sofrimento alheio. e nas inumeráveis noites em que ele envereda a beber vodka, solitário e ensimesmado. No que pensa esse homem nos dias em que se entrega assim à contemplação de sua alma?
Me lembro bem daquele dia do ano 1956 em que Alexei me contou com detalhes uma história de capa-e-espada que assombra nossa vizinhança desde o dia em que ele abriu uma revista O Cruzeiro e se debulhou em lágrimas ao ver as fotos da matéria principal. O desespero e a vergonha por esta manifestação tão rara de suas emoções fizeram com que ele se trancasse no quarto, para fugir dos olhos inquisidores de sua família e de suas perguntas insistentes.
“Aquela massa bruta de olhos azuis é repleta de sentimentos e diz ser um príncipe russo!”, comentou comigo minha mulher no dia seguinte. Ela vinha cheia de energia lá da casa da uruguaia, o olhar aceso como o de uma adolescente. Quando eu a vi ali à minha frente, se agitando suada e com a voz alterada, lembrei dos velhos tempos em que ela ainda despertava o meu desejo. Agora mal reconheço esta mulher, que passa seu tempo livre reclamando da sujeira de minhas roupas, do preço dos legumes na feira e da trama inverossímil da novela das oito. Mas o que ela me contou naquele dia era uma história ainda mais inacreditável do que qualquer destas novelas da Janete Clair, e o protagonista dela é meu velho companheiro de birita!
Alguns dias mais tarde, Alexei me mostrou sua certidão de registro pela primeira vez desde que havíamos nos conhecido. O que eu via à minha frente era um papel muito manchado e amarrotado, escrito à máquina e carimbado, datado de 1938. Ele dizia que Alexei Nicolau Romanov, natural de Petrogado, filho de Nicolau Alesandrovich Romanov e Alesandra F. Romanov, havia desembarcado como imigrante clandestino do Vapor Finlandez “Oriente” no porto de Santos em 1925.
Alexei me disse que logo após desembarcar ele foi morar em Livramento, no Rio Grande do Sul. Porém logo começou a encobrir sua nacionalidade russa, pois no Brasil, como em grande parte do mundo ocidental à época da Guerra Fria, o governo vivia a fase da caça aos comunistas. Foi lá em Livramento que ele conheceu sua esposa, Lindora Pons, uma uruguaia.
Depois de algum tempo, ele decidiu vir de mudança para Cuiabá, onde viveu até hoje uma vida simples, trabalhando como mecânico. Porém naquele dia de 1956, quando ele viu as fotos da família Romanov na reportagem da revista O Cruzeiro, ele disse ter sido engolfado por um mar de emoções suscitadas por velhas lembranças, há muito soterradas no fundo de sua memória. O que ele me contou a seguir, e que compartilho com você agora, foi uma história fantástica da qual nunca mais me esqueci.
Alexei foi um filho profundamente desejado. Antes de seu nascimento, o czar Nicolau II e sua esposa Alexandra Feodorovna tinham tido quatro filhas mulheres e temiam que não houvesse um príncipe para assegurar a herança do trono. Contudo, apenas seis semanas após o seu nascimento, a alegria da família pela sua chegada foi perturbada pela descoberta de que o príncipe Alexei havia herdado de sua mãe uma forma agressiva de hemofilia, que afligia os descendentes masculinos da Rainha Vitória.
A infância de meu amigo foi marcada por vários eventos em que sua vida esteve por um fio, ameaçada por acidentes banais, como os que ocorrem com a maior parte das crianças. Desde os três anos de idade ele contou com a proteção de Rasputin, que tinha fama por seus poderes sobrenaturais e de cura. Dr. Feodorov, um dos médicos da corte, contava a todos que, quando chamado por Alexandra, Rasputin se aproximava de Alexei, olhava para ele e cuspia, estancando o sangramento como que por magia.
Em março de 1917, quando o czar Nicolau II foi deposto, a família foi levada para a Sibéria sob a desculpa de protegê-la da onda revolucionária. Lá eles viveram em relativo conforto até que os bolcheviques tomaram o poder em outubro do mesmo ano. A partir de então, o confinamento da família real tornou-se mais radical: seus empregados foram demitidos e a família passou a ser alimentada com a mesma ração oferecida aos soldados, sem ter direito à café ou manteiga.
Em abril de 1918, eles foram enviados para Ecaterimburgo, à leste dos Montes Urais. À essa época o Exército Branco (anticomunista) ganhava força e ameaçava tomar Ecaterimburgo. Além disto, a Legião de Tchecoslovacos se aproximava da cidade para proteger a Ferrovia Transiberiana sob seu controle.
Desesperado com a perspectiva de que a família real fosse libertada pelos exércitos inimigos e utilizada por eles para ganhar o apoio popular, Lênin ordenou que fossem executados de maneira discreta. Em uma manhã de julho de 1918, Yakov Yurovsky determinou que a família Romanov fosse reunida na cave da mansão Ipátiev onde morava sob a desculpa de se protegerem da captura pelos inimigos. O fuzilamento do czar Nicolau, sua esposa, seu filho Alexei e suas quatro irmãs, o médico, o cozinheiro, a acompanhante e o cachorrinho se iniciou sem aviso prévio. O número de tiros desferidos pelo esquadrão de execução da polícia secreta foi tão grande que destruiu a parede em frente a qual eles estavam situados. Porém os Romanov demoraram muito a morrer, o que deixou seus executores profundamente assombrados
Ao serem expulsos do palácio real um ano antes, eles haviam costurado uma quantidade enorme de joias e brilhantes em sua roupa de baixo para evitar que fossem saqueadas. Suas roupas de baixo assim reforçadas funcionaram como um colete à prova de balas, desviando os tiros desferidos em direção ao seu peito, o que prolongou o seu sofrimento. O trabalho de execução teve de ser concluído a golpes de baionetas.
Alexei soube os detalhes do dia a dia de sua família após a deposição do czar e da sua execução por conversas que correram à boca pequena e que lhe foram retransmitidas por seu amigo Ian. Neste período, ele já tinha sido enviado para longe de seus pais e de suas irmãs na tentativa de salvar sua vida. Alexei me disse ter fugido do palácio onde morava com sua família na noite anterior à deposição do czar, acompanhado por um guarda finlandês chamado Ian Arman que desconhecia a sua verdadeira identidade. No lugar de Alexei, ficou Gregory Berzof, um garoto que era muito amigo de Alexei e muito parecido fisicamente com ele. Alexei o considerava quase que como um irmão.
Meu amigo me disse que, naquela noite, ele e o guarda fugiram em direção à fronteira com a Estônia e lá passaram vários meses hospedados na pequena fazenda da família do rapaz. Depois disso, Alexei vagou por vários países da Europa, chegando até mesmo a passar fome. Decidiu então começar a trabalhar como marinheiro e, desta forma, acabou chegando ao porto de Santos em um navio finlandês. O homem que eu conheci falava 14 línguas, conhecia boa parte do mundo e muitos presidentes. As histórias sobre sua origem nobre condiziam com suas características tão singulares.
Soube por uma matéria publicada no jornal, que durante os anos que se seguiram à execução dos Romanov, o local onde a ossada havia sido enterrada foi encoberto do público, devido ao medo que Lênin sentia de que este assunto causasse um levante popular. Porém o mistério só fez com que o cineasta Gely Ryaboy, que trabalhava para o Ministério do Interior da URSS, se tornasse obcecado pelo assunto e pelo desejo de localizar as ossadas. Gely valeu-se do seu acesso aos arquivos secretos para localizar o filho de Yakov Yurovsky, que havia liderado a execução dos Romanov. O filho de Yakov forneceu a Gely umas notas onde seu pai detalhava o local onde a ossada havia sido enterrada, em um pântano próximo à mansão Ipátiev, em Ecaterimburgo.
Eu li nesta mesma reportagem que, em 1979, o local onde a ossada havia sido enterrada foi finalmente descoberto. Porém foi apenas em 1989, durante o Glasnost, que a União Soviética admitiu publicamente a existência dos restos mortais da família real. Cinco anos mais tarde, um grupo de experts identificou as ossadas com base em análises de DNA. Mas um novo mistério era revelado ao público: os restos de Alexei e de uma de suas irmãs não haviam sido encontrados com o restante de sua família.
“Mas é claro que não podem ter achado os restos de Alexei junto à ossada dos Romanov, pois eu estou bem aqui, vivo!”, me disse ele um dia, enquanto agitava enfurecido o jornal. Nesta época, o meu amigo Alexei e seus filhos já havia decidido contar ao mundo a sua história, na esperança de reivindicar o seu direito ao espólio da família real. Contudo, um exame de sangue comprovou que ele não era o verdadeiro príncipe Alexei. Apesar disso, ele continuou insistindo que era o herdeiro do trono imperial russo até 1996, quando morreu por atropelamento aos 92 anos de idade.
Oitenta anos após a execução da família Romanov, a igreja ortodoxa russa determinou a beatificação dos Romanov e dos empregados que morreram com eles. No lugar da mansão Ipátiev, onde eles foram executados, foi posteriormente construída a Igreja do Sangue de Todos os Santos da Rússia, e um altar foi erigido no lugar exato onde ocorreu a execução.
Enquanto assisto o seu caixão descer à sepultura, meu caro amigo, lembro das histórias sobre uma infância privilegiada que você me contava com o olhar perdido no espaço, enquanto suas mãos brincavam distraídas com a medalhinha de ouro pendurada no seu pescoço. Você me descreveu com detalhes os aposentos do palácio real, situado a pouca distância de São Petesburgo; as brincadeiras de criança nos jardins do palácio; suas viagens de férias no iate imperial, pela Finlândia e pelo Mar Negro. Quando fecho os olhos ao sabor dessas memórias partilhadas, sinto novamente o cheiro morno de maresia que me invadia naqueles dias.
Lembro ainda do dia em que, impressionado pela incongruência entre aquela medalhinha de ouro que você portava e sua aparência tão tosca, perguntei que joia era aquela. Você me disse que a medalhinha com a imagem do São Serafim de Sarov tinha sido um presente de batismo de sua madrinha, e que era graças a este santo que você tinha nascido.
Você se foi para sempre, mas em um ato de fé na veracidade de suas histórias, decido neste momento guardar junto ao peito uma foto sua junto à imagem de São Serafim, sabendo que a partir de hoje você estará sempre comigo, me protegendo.
P.S.: Os restos mortais de Alexei e de sua irmã foram descobertos em 2007 por um grupo de arqueólogos amadores e sua identidade foi confirmada por análises de DNA. Sua ossada havia sido enterrada a 15m da sepultura original dos seus familiares. Após muita relutância da Igreja, que não aceitava a veracidade das análises de DNA, Alexei e sua irmã foram afinal beatificados.
Este conto foi escrito livremente com base nos fatos relatados na ampla bibliografia da família Romanov e do pretenso “Czar de Cuiabá”. Apenas a história da medalhinha de ouro foi criada a partir do éter.
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