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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Manual para libertação de uma alma cativa

 

This image is courtesy of Thomas Kole.   

 

Célia nasceu ao cair da noite, em um dia de céu muito limpo, cheio de estrelas. Seu tipo físico não era o típico das brasileiras, se é que isso existe. Ela tinha a pele clarinha como a face da lua, e o cabelo castanho claro, quase louro, que se encaracolava em uns cachos soltos, como em uma auréola de anjo barroco.

 

 Quando Célia fez um ano de idade, sua mãe começou a ficar preocupada, pois ela ainda não havia dito nenhuma palavra. Todas as outras crianças da mesma idade com quem ela brincava na creche já falavam papai, mamãe, papá..., mas Célia continuava muda. Sua mãe reparou que toda vez que ela tentava chamar a atenção de Célia chamando-a pelo nome, Célia desatava a berrar inconsolável. Certo dia, sentada no colo de sua tia, enquanto esta conversava animada com seus pais sobre todas as obras que o novo prefeito estava fazendo na cidade, Célia pronunciou sua primeira palavra: a cada vez que sua tia dizia cidade, Célia repetia citlali e todos caíam na gargalhada. Sua mãe decidiu então corrigi-la, mas ela continuava teimosamente repetindo citlali, citlali, citlali até que rompeu no choro como de costume e teve de ser levada para o seu quarto. “Deve estar cansadinha, a coitada”, falou seu pai.

 

 

A história da vez em que Célia pronunciou a sua primeira palavra logo se transformou em uma lenda familiar que todos gostavam de repetir para os visitantes e amigos. Daí para ela começar a ser chamada de Citlali, foi um pulo. Citlali logo foi abreviada para Tali, e agora Célia se virava sorridente toda vez que alguém lhe chamava assim. Aos sete anos, quando ela entrou para o colégio, toda vez que alguém perguntava o seu nome, ela dizia muito séria “Citlali, ou Tali, para os íntimos”. Após alguma confusão inicial, todos logo se acostumavam com essa menina estranha que se apresentava com um nome diferente daquele registrado nas folhas de chamada, e passavam a chamá-la pelo seu apelido. Até mesmo as professoras faziam isso.

 

Tali era uma criança introspectiva, tinha dificuldade de se integrar com as demais, pois preferia passar o tempo desenhando. “Tá sempre sonhando acordada, essa menina!”, não se cansava de repetir a sua mãe. Mas o que sua mãe não sabia era que Tali também sonhava muito durante a noite, uns sonhos muito lindos e coloridos. Jamais tinha pesadelos, ou se acordava assustada falando de monstros. Tali adorava dormir. Era dormindo que ela passava a melhor parte do dia.

 

Logo após sua mãe apagar a luz e dar o beijo de boa noite, Tali começava a sentir o corpo leve, muito leve, e quando se dava conta já estava flutuando em um céu cheio de estrelas. Impulsionada por um vento frio que vinha do alto das montanhas nevadas às suas costas, ela voava baixo sobre um terreno pantanoso, em direção a um lago imenso e plácido. As águas do lago refletiam a luz da lua como um espelho em noite clara. Em meio ao lago, se erguiam uns morros baixos de topo plano, quase brancos, que se tornavam imensos, à medida que ela se aproximava.  Ela voava lentamente, se detendo a cada detalhe da paisagem. No dia seguinte, essas imagens voltariam como flashes, e seriam aplicadamente incorporadas nos seus desenhos.

 

Toda madrugada, por volta das três horas da manhã, naquele horário em que a brisa da noite cessa e a temperatura sobe, os pais e o irmão de Tali jogavam as cobertas no chão e se agitavam, suados, em busca de um canto fresco do lençol. Nessa mesma hora, Tali perdia impulso e, enfim, aterrissava. Quase sempre o lugar escolhido era um canto raso do lago, em meio aos juncos. Ali, ela se despia e tomava um longo banho. Flutuava de costas, sentindo seu corpo subir e descer ao sabor das marolas. Às vezes um peixe vinha bicar seus calcanhares. 

 

À hora que o céu começava a clarear, e os tons pastel invadiam o céu, Tali saía da água apressada, torcia os cabelos para tirar o excesso de umidade e, vestida, tomava novo impulso na brisa nascente, que agora soprava em direção às montanhas. Durante anos, esse sonho se repetiu toda noite. Cada vez ela aterrissava em um local diferente junto às margens, pois a brisa nunca era suficiente para levá-la até os morros brancos que flutuavam nas águas mais profundas do meio do lago. À hora que o despertador tocava, Tali simplesmente virava de lado na cama, ainda exausta, devido à intensa atividade noturna. Seu pai vinha sacudi-la. “Acorda menina, que é hora do banho. Senão você vai se atrasar”. “Me deixa dormir. Eu já tomei banho. Olha meu cabelo, ainda tá molhado”. Seu pai, atônito nem respondia. Somente chacoalhava seu braço mais uma vez e repetia “Acorda”.

 

Quando Tali fez 21 anos, sua madrinha ofereceu como presente uma viajem para a Suíça, onde elas tinham parentes. Essa madrinha trabalhava no ramo de eventos e era super sociável. Ao ver sua afilhada sempre sozinha e perdida em sonhos, ela se afligia. “Como é que essa garota vai arrumar namorado?”. Ela decidiu então gastar suas milhas na compra de um bilhete de avião e mandar Tali para conhecer o grupo enorme de primos e primas com idades próximas à dela que moravam em Berna, na Suíça. Tali agradeceu educadamente, mas como não tinha a menor intenção de ir à Suíça, ela trocou em segredo o destino do bilhete aéreo. Iria para a cidade do México, que ela tinha visto em um programa da Discovery na noite anterior e tinha achado o máximo.

 

Chegando lá, Tali contratou uma excursão para fazer um tour guiado pela cidade. Uma das 25 maiores cidades do mundo, a cidade do México era um enigma difícil de ser desvendado sem a ajuda de um guia por alguém com tão pouca experiência em viagens, como a Tali. Logo no primeiro dia, ela se deu conta da sorte que tinha tido. Ao invés de um guia comum, desses que te leva aos lugares óbvios e repete as mesmas informações contidas nos guias de viagem mais conhecidos, o seu guia era um professor de história e arqueólogo aposentado, que agora trabalhava apenas por prazer.

 

Esteban Caballos, o guia de Tali, começou explicando a duração do passeio, que pontos seriam visitados, e pediu a todos que fizessem uma breve apresentação de si mesmos antes de ele começar a aula sobre a história do México que ele tinha preparado. Quando Esteban pediu à Tali que se apresentasse, ela respondeu em voz baixa, “Citlali”. “O que?”, perguntou ele, intrigado. “Citlali”, ela repetiu, e teve de explicar ao grupo a origem de seu nome, nada brasileiro. Para o desespero de Tali, o grupo desatou a rir ante uma origem tão esdrúxula de seu nome. Esteban, então pediu que todos se acalmassem para que ele pudesse começar a aula, pois já estavam com o cronograma atrasado.

 

Quando chegaram à Basílica de Nossa Sra. de Guadalupe, nas encostas do Cerro Tepeyac, Tali olhou para o Norte e avistou uma bela cadeia de montanhas rochosas com seus cimos nevados. “Que lindo!”, ela disse para si mesma, e ali ficou, presa de um sentimento estranho. Esteban reparou que ela parecia desinteressada da basílica e veio saber o que estava acontecendo. Ela então contou a ele que sonhava noite após noite o mesmo sonho, desde a sua infância, e que neste sonho ela partia e retornava de uma cadeia de montanhas idêntica a esta, a sua frente. Esteban a puxou delicadamente pelo braço em direção ao restante do grupo, enquanto dizia “Mais tarde você me conta este seu sonho”.

 

Ao final da tarde, quando todos se despediram e voltaram aos seus hotéis, Esteban chamou Tali de lado e propôs a ela que fossem no bar em frente para tomar uma cerveja juntos, uma cerveja 100 % mexicana. “Cerveza Minerva”, ele pediu ao garçom, enquanto Tali escolhia a mesa. “Minerva?”, ela perguntou, “Nunca ouvi falar dessa cerveza. Sempre acreditei que as melhores cervejas mexicanas fossem a ‘Corona’ e a ‘3 equis’”. “Elas agora pertencem a um grupo holandês”, respondeu Esteban, com desdém. “Mas me conte este tal de sonho que você tem desde criança”.

 

Ela então contou sobre o voo impulsionado por uma brisa fria, as montanhas nevadas, o lago imenso com suas pequenas ilhotas cheias de pés de milho, suas roupas de algodão rústico e os morros de topo plano que flutuavam no meio do lago. Ele escutou tudo maravilhado. “Citlali, seu nome é muito bonito. Você sabia que ele é um nome na versão antiga da língua Nahuatl? Ele significa estrela. Eu acho que toda noite você faz uma viagem astral para Tenochtitlán. Somente não entendo por que você não passa da borda do lago. Acho que você tem medo. Será que é isso?”. De boca aberta, sem saber o que dizer, ela afinal perguntou “Tenoch o quê?”. “Eu não vou te dizer, você vai entender por conta própria. Mas para que isso aconteça, é preciso que você perca este medo. Esta noite eu vou tentar voar contigo e, na minha companhia, você vai conseguir chegar ao meio do lago. Mas, para que isso aconteça, é preciso não ficar perdendo tempo nos locais que você já conhece”.

 

Ela voltou para o hotel meio aturdida. “Será que isso era uma cantada? Mas o cara era muito velho para achar que podia se dar bem comigo. Logo ele, que eu tinha achado tão gente boa!”. Ela, então, resolveu esquecer esta história e foi procurar um restaurante para jantar. Depois dormiria cedo, pois o dia seguinte prometia ser cansativo. À hora de dormir, repetiu o seu ritual de sempre. Após desligar a luz, se concentrou no momento em que sua mãe lhe dava o beijo de boa noite quando pequena e, em seguida, começou a relaxar todos os membros, um a um, até que começou a se sentir flutuar. Quando abriu os olhos, ela viu o céu estrelado como de costume. Virou o rosto levemente para trás e viu as montanhas nevadas, à frente, viu o lago. Só então ela reparou que nesta noite o nível do lago estava mais baixo do que o usual. No entorno da lua, havia um halo vermelho. Eram tempos de seca.

 

Ela se lembrou do conselho de Esteban, de não perder tempo nos locais que já conhecia. Concentrou-se em seu objetivo e imediatamente sentiu que alçava um voo a maiores altitudes e mais veloz.  Ela então relaxou, feliz com esta nova descoberta. Foi neste momento, que o assobio do vento em seus ouvidos pareceu diminuir. Perturbada, ela virou o rosto para um lado e para o outro, tentando descobrir o que se passava. O susto que ela levou quando viu que Esteban voava à sua direita, fez com que ela perdesse altitude e se assustasse ainda mais. “Concentra”, gritou Esteban lá do alto, e ela aos poucos começou a recuperar a altitude até chegar novamente ao seu lado. “Hoje nós vamos chegar até o meio do lago. Você vai ver muitas coisas diferentes e não vai sentir medo”, ele falou para ela. Ela apenas fez um aceno de cabeça, serena.

 

Quando passaram algumas dezenas de metros da beira do lago, ela reparou que o que flutuava no meio do lago não eram morros, mas sim um conjunto de pirâmides, que lembrava as pirâmides do Egito, mas tinham o teto plano e uma arquitetura mais complexa. Das margens do lago partiam em direção à pirâmide principal umas estradas largas e retilíneas, ladeadas por canais e aquedutos. A cidade era imensa, toda atravessada por canais e ruas interligadas por pontes. Lembrava Veneza. O lago tinha um dique que separava a região em torno da cidade de uma entrada de água saloba, permitindo que a água de degelo que escorria pelas encostas dos morros formasse um lago de água doce, onde a população cultivava milho em pequenas ilhas artificiais e se banhava. 

 

Quando se aproximou mais das pirâmides, Tali observou que uma cerimônia estava sendo conduzida no seu topo por um grupo de sacerdotes. O sangue proveniente do sacrifício realizado em uma mesa de pedra, escorria pelas canaletas existentes no topo da pirâmide e em seguida jorrava pelas escadarias. Um grupo de pessoas que assistia esta cena impressionante se comportava de modo histérico, aos gritos, enquanto as próximas vítimas do sacrifício aguardavam pacificamente a sua vez, formando uma longa fila que serpenteava pelas laterais da pirâmide. Tali se aproximava lentamente do topo quando se deu conta de que a próxima vítima era idêntica a ela. Esteban então segurou delicadamente a sua mão e disse “Vamos, você não precisa continuar assistindo. Você apenas tinha de entender por que tinha tanto medo de se aproximar das pirâmides.”. Ao ouvir isso, ela sentiu um forte puxão e a impressão de que voava de costas a uma velocidade absurda. Acordou com uma sensação de vertigem, como se estivesse caindo na sua cama ao abrir os olhos. Era o despertador que tocava, avisando o início de mais um dia de turismo intenso pela cidade do México.

 

Chegou cedo ao ponto de encontro, onde Esteban já lhe espera. “Agora você entende o sonho que você tem desde criança? Você foi uma mulher da nobreza asteca, que foi sacrificada aos deuses no topo da pirâmide principal quando uma forte seca atingiu esta região onde hoje é a cidade do México. Por isso você tinha medo de se aproximar deste lugar . Naquela época isso aqui era um terreno pantanoso com um grande lago, situado no sopé desta cadeia de montanhas. Aqui os astecas construíram a cidade de Tenochtitlán, que logo ocupou as maiores ilhas do lago e teve se ser expandida sobre um extenso aterro sobre estacas enfiadas no fundo do lago. Na porção central da cidade foi construída uma imensa praça de pedra e um complexo de pirâmides, onde os sacrifícios eram realizados para aplacar a cólera dos deuses”. 

 

“Agora que você conhece a razão do sofrimento que aprisionou a sua alma nestes últimos 1500 anos, liberte-se desta dor e escolha o rumo que você quer dar a sua vida. Vá, e me mande notícias”. Esteban, depois ela ficou sabendo, além de historiador e arqueólogo era um exotérico muito conhecido na América Central e na América do Norte. Que sorte a sua em encontrar alguém como ele! 

 

Tali voltou imediatamente para o hotel e conseguiu antecipar seu bilhete de volta ao Brasil para aquele mesmo dia. Ao chegar em casa, a família já esperava por ela toda reunida, ansiosa por saber as novidades. Após distribuir as lembranças que ela tinha trazido para cada um deles e mais um presente especial para sua madrinha como forma de agradecimento por aquela viagem tão especial, sua dinda perguntou “Agora conta pra gente, o que foi que você descobriu assim de tão especial lá no México?”. Ela olhou para todos eles e com um sorriso misterioso respondeu “foi a Cerveza Minerva, a única 100% mexicana”. Eles todos se olhavam atônitos, tentando entender essa reposta estapafúrdia, quando os primos chamaram “Tali, vem contar pra gente a sua viagem”. “Tali, não”, ela respondeu. “Eu me chamo Célia”. E saiu correndo para se juntar ao grupo.

 

 

 

 

 

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Tags: almaviagem astralimperio astecaTenochtitlán

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