Joaquim e o Corvo (cap.2)
Este é o capítulo final de uma fábula sobre a amizade entre um homem e um corvo na Alemanha durante o período da mini era glacial. Se deseja ler o primeiro capítulo, por favor clique aqui.
Certo dia Joaquim reparou que o corvo, sempre tão pontual nos seus encontros diários, tardava a chegar. Preocupado, ele saiu a caminhar pela borda do bosque examinando as copas das árvores em busca do pássaro. Não demorou muito, ele avistou seu amigo empoleirado em um galho não muito alto, exibindo uma atitude peculiar. Seu interesse por algo que ele examinava de longe era tanto que mal se movia. Seguindo o olhar do pássaro, Joaquim reparou na carcaça de um cão esquelético caído sobre a neve. Lá pelas tantas, o corvo decolou em direção à carcaça e deitou-se imóvel ao seu lado, com as asas estendidas e os olhos semifechados. Quem o visse assim, tão imóvel e vulnerável, com certeza acreditaria que ele estava morto. Pouco depois, outro corvo se aproximou, atraído pelo cheiro da carcaça, mas assim que viu o outro corvo deitado inerte ao seu lado, hesitou. Estaria envenenado? Após examinar a cena atentamente e concluir que a situação era muito arriscada, ele desistiu do repasto e voltou a alçar voo. Schlau então levantou-se, sacudiu as penas e se pôs a comer a carcaça com avidez.
- Mas que matreiro! – disse Joaquim, sorrindo maravilhado com a esperteza do seu amigo - O nome que escolhi para este corvo não poderia ter sido mais adequado!
Enquanto Joaquim apreciava a cena, o vizinho e seus filhos se aproximaram para investigar o que havia de tão interessante por ali. Mas logo se deram conta de que a carcaça pertencia ao seu velho cão, que desaparecera no dia anterior. Ao som do choro e dos berros do caçula, o vizinho e seus filhos mais velhos decidiram interromper aquela cena chocante aos tiros de estilingue. Dali a pouco o corvo jazia ensanguentado sobre a neve ao lado do cão.
À tardinha, Helena encontrou seu marido sentado na varanda de casa em estado de choque. Embora ela o assediasse com perguntas, nada o tirava do seu mutismo. Naquela noite, ele foi para cama sem comer, o que se repetiu no dia seguinte, e no próximo. Joaquim parecia ter desistido de viver.
Os dias se passavam e o desânimo de Joaquim persistia. Quando ele afinal saiu de casa dizendo a sua esposa que iria dar uma caminhada no bosque, ela se sentiu aliviada. Afinal, nada é melhor para o humor do que um pouco de ar fresco e exercício físico. Porém, quando a noite chegou e ele ainda não havia voltado, ela se desesperou. Será que ele, sempre tão atento aos horários, teria sido pego de surpresa pelo cair da tarde?
Em pouco tempo, um grupo de vizinhos percorria o bosque munido de tochas, chamando por Joaquim a plenos pulmões. Mas o inevitável havia ocorrido. Profundamente abatido pela fome e pelo tempo sombrio, Joaquim terminara por sucumbir às garras da depressão ao ver seu amigo alado ser apedrejado injustamente. Seus vizinhos o encontraram enforcado em uma árvore, completamente nu. Suas roupas haviam sido dobradas com esmero e colocadas ao abrigo das intempéries.
Naquele domingo, o pastor luterano fez um longo discurso para a congregação em que condenou o suicídio de Joaquim, considerado uma violação do quinto mandamento, e proibiu seu enterro em território consagrado. Sua esposa voltou para casa inconsolável. Como era possível que seu marido, que fora sempre um homem tão correto e temente a Deus, tivesse sido condenado pelo pastor a vagar como uma alma penada pela terra, sem descanso por toda a eternidade?
Poucos dias mais tarde, enquanto cuidava do jardim, ela ouviu um chamado que fez seu sangue gelar nas veias.
- Helena! Helena! – era a voz de seu marido que a chamava. Rouca, porém inconfundível.
Virou-se para um lado e para outro, mas não havia ninguém à vista, apenas um corvo empoleirado no corrimão da varanda olhando diretamente para ela com seus pequenos olhos negros. O corvo continuou a vir todos os dias e a chamar pelo seu nome, como seu esposo fazia. Era como se Joaquim ainda estivesse presente ao seu lado e continuasse a cuidar dela através do seu novo amigo alado. Os chamados desta criatura mantinham a ligação entre os dois mundos – o dos vivos e o do além – transcendendo o silêncio da morte.
Ainda que Helena se sentisse feliz com o consolo proporcionado pelo pássaro, ela foi procurar a ajuda do pastor para melhor entender o que estava acontecendo. Este porém a acusou de mancomunar-se com o demônio e lhe ordenou que dali em diante ignorasse as vozes. Helena partiu dali se perguntando que Deus era esse, que ignorava as súplicas de seu povo por alimento e o consolo a uma alma desesperada, e que, com suas regras incompreensíveis, havia condenado seu marido a vagar pela eternidade.
Com a alma partida pela incompreensão de sua congregação e de seu pastor, Helena decidiu abandonar todos e seguir o marido em sua vida errante pela terra. Quem cruzasse com ela nas estradas deste mundo de Deus, veria um corvo preto voando bem próximo. Apenas um olhar mais atento seria capaz de vislumbrar o espírito de seu companheiro fiel que seguia ao seu lado.
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