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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Jardim das Delícias em Botafogo

 


Morava em um apartamento que possuía um pequeno terraço que mais parecia uma floresta. Mas como se não bastassem todos as folhagens e vasos de flores, um dia eu resolvi que plantaria abóboras. Abóbora, você deve saber, é uma planta rasteira, que precisa de muito espaço para crescer e dar frutos. Resolvi então que eu faria uma treliça de bambu por onde ela poderia se espalhar livremente, sem ocupar todo o espaço restante do terraço. Mas onde conseguir bambus em plena Zona Sul do Rio? Esse projeto, como tantos outros, ficou armazenado na memória, aguardando o momento propício para ser colocado em prática.


Num desses sábados ensolarados, tomava meu café da manhã sentada no balcão da cozinha admirando o Mundo Novo pela janela. O Mundo Novo, para quem não conhece, é um morro que separa Botafogo de Laranjeiras. Nele ainda há muita vegetação. Em alguns trechos das ruas que serpenteiam morro acima, as árvores altas, os cipós que pendem lá de cima, os rochedos que ainda restam, revestidos de musgo e com filetes de água que correm não sei de onde, dão a impressão de que você atravessou um túnel do tempo e voltou para o Rio antigo. Muito exótico.

 

Como tantos outros morros do Rio, o Mundo Novo sofre de dupla personalidade. Na encosta voltada para Botafogo há mansões e casas de classe média alta incrustadas na mata. À medida que subimos o morro, estas mansões dão lugar a outras casas mais simples e malconservadas. Bem lá no seu alto, na virada para Laranjeiras, se inicia uma comunidade. Pois foi admirando as caturritas, que voavam alvoroçadas entre a mata do Mundo Novo e as árvores do terreno ao lado do meu prédio, que me dei conta de que enfim poderia começar minha plantação de abóboras: nas encostas do morro à minha frente cresciam tufos de bambu majestosos, que aguardavam pacientemente a minha visita! Naquela manhã mesmo, pedi ajuda ao meu ex-namorado e juntos partimos para a caça ao bambu. 

 

Subíamos lentamente a rua que se estende desde a base do morro até o seu alto enquanto examinávamos com atenção cada planta que se elevava acima dos muros dos casarões. Ao ingressarmos na segunda personalidade do morro, aquela da classe média baixa e das casas malconservadas, com moradores que formam uma verdadeira comunidade, se iniciou o trecho interessante da rua. Sentados às janelas das casas, ou de pé, ao lado dos portões, se viam os moradores idosos, que, ociosos, matavam o tempo de sobra admirando o movimento da rua.  Fomos perguntando um a um se tinham bambu nos seus jardins. Afinal uma senhorinha nos respondeu que sim e, então, expliquei a ela o meu projeto. Ela logo nos convidou a entrar. Atravessamos toda a sua casa, até chegarmos ao jardim, situado no fundos do terreno. A casa era um pequeno labirinto, mas o jardim, esse, era magnífico. Imenso. 

 

No jardim logo ao lado da casa, ela nos apresentou com orgulho a sua plantação de abóboras. Seguiam-se outros pequenos canteiros nos quais ela capinava todo o dia. E então vinha uma extensão grande de terra nua, seguida de um muro baixo, que separava a parte mais alta do terreno, onde ficavam as moitas de bambus. Ao final do terreno, um muro muito alto de pedra fazia limite com a rua que serpenteava morro acima. Com o ar matreiro, ela se sentou sobre o muro baixo e abraçou o seu peru. O casal de perus, ela nos confiou, estava ali para cuidar da segurança da casa, pois eles eram implacáveis com invasores, mas muito mansos com os de casa. Contudo, o peru macho que estava ali na minha frente, balançava a sua papada, ameaçador, gorgolejava alto e eriçava todas as suas penas, enquanto me examinava de um olho atento.

 

Ela então pegou um facão e cortou três varas de bambu que pareciam perfeitas para o meu projeto. No caminho de volta ela veio recolhendo alguns legumes, limões e uma abóbora para me presentear. A visita se estendia sem que soubéssemos como nos despedir dela sem ser grosseiros. Coitada, devia se sentir solitária! Ao entrarmos novamente em sua casa ela insistiu que tomássemos um café ou um copo d’água. Embora a gentileza fosse grande, eu começava a me sentir prisioneira. 

 

Seus sorrisos do início agora davam lugar a uma expressão imutável, o olhar insistente, pousado sobre nós. Seu marido logo apareceu na sala, trazendo mais um casal de filhos adultos e uma nora. Subitamente o ar da casa havia mudado. Os mais jovens nos olhavam sérios. Desconfiados? Com os pelos dos braços arrepiados, olhei para meu ex e disse “Vamos Tan, já está na hora de voltarmos para casa. Meu pai já deve estar preocupado”. Agarrei a sacola com os legumes e os bambus e comecei a caminhar em direção à porta de entrada. O casal de idosos nos seguiu dizendo, insistentes, que ainda era cedo. Perguntaram se queríamos mais algum legume. Nos disseram que poderíamos voltar sempre que quiséssemos. Quando enfim passamos pela porta de saída, me virei para trás e vi suas carinhas, uma acima da outra, enfiadas no vão estreito entre o umbral e a porta, que nos observavam com um olhar fixo, enigmático.  Desci a ladeira com o coração aos sobressaltos e a impressão de que, desta vez, João e Maria tinham conseguido escapar da casa da bruxa.

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Tags: floresta urbanabruxamundo novobambus

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