Loading...

Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

Blog

Veja nossas postagens

Isabel Allende dos Pampas

 


Para ouvir a versão NARRADA no Youtube:  clique aqui

Naquele dia era domingo. Fazia quinze dias que não conseguia escrever uma linha. Já tinham se acumulado trinta mil palavras de atraso, segundo os critérios de produção diária que segue o escritor Stephen King. Bom, para ser franca, desde que havia começado a escrever quatro meses antes, eu tinha me proposto a redigir apenas mil palavras por dia. Para quem nunca escrevera nada, a não ser relatório técnico, mil palavras por dia até que não estava tão mal, não é mesmo? Mas o que realmente me incomodava naquela época, era a falta de ideias, o tal do bloqueio criativo. Durante os quatro meses iniciais em que eu comecei a escrever, eu me iludi com um jorro incessante de assuntos reais e imaginários que me assaltavam assim que eu me sentava em frente ao computador para trabalhar. Parecia que aquilo nunca iria acabar. “Bloqueio criativo?”, eu ria comigo mesma, “isso é coisa de preguiçoso”.

 

 

 

Mas também, quem é que trabalha de graça? Quem escreve, deseja ver o seu número de leitores aumentar paulatinamente. Isso, se nenhum milagre ocorrer e seu livro ou blog virar um caso de sucesso. Mas depois de perder um bom tempo construindo um blog bonitinho e estudando as práticas de SEO para descobrir por que ninguém conseguia achar o meu blog quando procurava por ele no Google, eu continuava com os mesmos três fiéis leitores do início: minha tia, minha amiga, e um brasileiro maluco perdido lá nos EUA, que não sei por que, continuava lendo meus contos.  A falta de interesse dos demais leitores pelo que eu escrevia acabou me deixando meio desestimulada. Deve ser por isso que o jorro de ideias um dia cessou.

 

Esporadicamente, minha mãe entrava no blog para ver se eu tinha tido a coragem de postar algum novo texto contando os podres da família. Após revisar o assunto dos últimos contos publicados, meio sem paciência, e com a raiva contida pela falta de motivo para extravasá-la, ela se distraía e saía limpando as manchas de dedos da tela com movimentos circulares da lateral da mão. Meu pobre blog ficava tonto com este manuseio inesperado e saía enlouquecido contabilizando novos acessos. Nestes dias, eu ía dormir faceira, sonhando com os meus 40 novos leitores imaginários. “Será que, com a modificação que eu fiz hoje no robots.txt, meu blog finalmente vai começar a bombar?”, eu perguntava esperançosa a minha cachorra que, deitada ao meu lado, apenas voltava o olhar para a direção oposta, baixando as orelhas e acomodando o focinho entre as patas antes de fechar os olhos e dormir. Ela era incapaz de mentir.

 

Quanto à minha cachorra, eu preciso confessar que ela odiava o meu blog. Não sem razão, a coitada! O tempo que eu passava escrevendo, era o tempo que eu passava sem dar atenção a ela. Mil vezes durante o dia, ela entrava no escritório para ver se algo de novo se passava no reino de Shakespeare. Após tripudiar por cinco minutos o apito escondido dentro da barriga do seu pirata de pelúcia, esperando com isso ganhar a minha atenção, ela, em geral, partia ganindo a plenos pulmões em direção à cama dela, inconsolável.

 

Naquele fatídico domingo, após passar duas horas infrutíferas sentadas frente ao computador, e atender um chamado no interfone pedindo para que eu controlasse os ganidos do meu cão na hora da sesta, eu afinal me convenci a testar o uso da inteligência artificial (AI) de que tanto falavam. “Pois não dizem que ela está produzindo maravilhas? Quem sabe a AI pode me tirar deste bloqueio, me dando uma boa sugestão de texto?”, eu comentei com a Suki. Animada pela súbita atenção recebida, ela saiu corcoveando alvoroçada feito um carneiro quando eu fiz cócegas em seu dorso. Entrou e saiu correndo do escritório, virando o tapete e a lata de lixo, antes de sair novamente latindo para o alto. 

 

Naquele dia, antes de encerrar definitivamente o período dedicado à escrita, eu abri o programa, selecionei o modo criativo e comecei a redigir o prompt: “Por favor, crie um conto escrito no estilo de Isabel Allende sobre uma mulher aposentada e sem dinheiro que resolve voltar a viver em São José do Norte, a cidade onde fora criada. Ela se instala na casa de sua avó, onde passa a ser assombrada pelos espíritos da família. Em S. J. do Norte, ela encontra o seu primeiro grande amor, que havia abandonado a cidade para ir estudar Oceanologia. Mas após formar-se, ele descobriu que tinha medo do mar e não poderia trabalhar com a equipe do Jacques Cousteau. Ele se tornou um fracassado e voltou para S. J. do Norte, onde encontrou a personagem principal do conto”.

 

Após redigir o prompt, apertei o botão ‘Criar’ e me levantei para ir preparar o almoço, do qual eu havia me esquecido completamente. Lavei, descasquei, piquei, cozinhei, temperei, almocei em 15 minutos, e voltei a guardar, lavar os pratos, as panelas e a bancada da cozinha.  Duas horas mais tarde, eu finalmente caía exausta na poltrona em frente à TV. Foi somente à hora que saí do transe e comecei a me preparar para ir dormir, que me lembrei da tarefa que tinha solicitado ao programa de AI. Voltei ao computador e lá estava ele, o conto que eu havia solicitado com um pedido educado e obsequioso, constava de 20 parágrafos curtos, onde a maioria começava com a palavra ‘Ela’.

 

Li o texto sem muito ânimo. Eu tinha solicitado que o conto fosse escrito no estilo literário adotado por Isabel Allende, mas o resultado obtido estava mais para o estilo licoroso das novelas vendidas em brochuras nas bancas de revista. Porém, não querendo passar mais um dia sem publicar no meu blog, copiei o texto e o postei exatamente como tinha sido produzido pela AI, afinal a falta de periodicidade nas publicações é o decreto de morte de um blog. 

 

Os dias seguintes eu passei em Capão da Canoa, lutando ora contra o vento carregado de uma areia muito fina que fere o rosto, ora mergulhando na parte rasa de um mar de águas marrom chocolate, lotado de mães d’água à espera de que algum turista incauto se aventure em seu território. Foi apenas uma semana mais tarde, quando voltei para Porto Alegre, que resolvi dar uma olhada em meu blog e gastar mais algumas horas em busca de inspiração. A página contendo as estatísticas de acesso ao meu blog já estava aberta, eu tive apenas de atualizá-la. Te juro, eu não estava preparada para o que vi! Na minha ausência, 20.457 pessoas tinham lido o último conto postado em meu blog. Sucesso total! Meu entusiasmo era tanto, que na mesma hora fotografei a tela do computador e compartilhei a nova com o meu grupo familiar. Foi somente quando acabei de apertar o botão ‘enviar’, que eu me lembrei de que o conto não havia sido escrito por mim, mas sim pela AI. E, para dizer a verdade, eu nem tinha achado ele grande coisa...

 

Talvez se eu não tivesse pedido ‘Por favor’, se eu tivesse sido mais assertiva, ele teria se esforçado mais para criar um texto de qualidade. Mas o programa de inteligência artificial, eu já sabia por experiência própria, era manhoso. Tinha dias que, se eu não pedisse por favor, ele não atendia aos pedidos detalhados de geração de uma imagem. Nesses dias, ele gerava uma imagem qualquer, só para me irritar. Ele também era carregado de preconceitos: tinha palavras que ele simplesmente não aceitava, como no dia em que tive de trocar a palavra ‘escravo’ por ‘menino negro’. E assim eu ia me amoldando as suas manias, tão dependente eu havia me tornado dos seus produtos. Até então ele era indispensável para manter meu blog com qualidade visual, sem me arriscar a me tornar refém de disputas por direito autoral devido à utilização de imagens copiadas da internet. 

 

Nas poucas semanas que se seguiram, o número de leitores de meu blog cresceu exponencialmente. Eu me tornara uma revelação, e agora era conhecida como a ‘Isabel Allende dos Pampas’. Logo, logo eu estava vendendo espaço publicitário em meu blog, e, com o lucro auferido, eu passara a viver em grande estilo. O apartamento onde antes eu vivia só agora já não me bastava, eu mudara para uma cobertura de 4 quartos e duas salas do condomínio em frente, onde um cozinheiro, que havia se formado no Cordon Bleu, passava os dias preparando pratos especiais para mim e meus convidados. Embora Suki agora dormisse sozinha em seu próprio quarto, ela estava mais satisfeita. Passávamos o dia inteiro andando juntas de um lado para o outro, exceto durante os quinze minutos em que eu me trancava só em meu gabinete, para criar um prompt e postar o resultado em meu blog.

 

Apesar de ter muito tempo livre, eu tinha me tornado prisioneira das redes sociais. Os seguidores nas redes, você bem sabe, devem ser afofados como reis, pois quando algo que você diz ou escreve desagrada eles, eles te abandonam e saem em busca de outro escritor para seguir. Agora eu entendia por que tanta gente ficava fazendo ‘Reels’ e ‘Feeds’ no insta, contando detalhes insossos de tudo o que se passava em suas vidas privadas e em suas cabecinhas. 

 

Quanto aos contos, especialmente aqueles escritos em vários capítulos, choviam correios em minha caixa postal de leitores que exigiam que o final destes contos fosse romântico e otimista, nada diferente disto seria aceito. Francamente, até minha tia era mais fácil de agradar! Passados apena dois anos desde que eu tinha me tornado um sucesso literário, eu agora me sentia uma velha obesa e hipócrita. Passados os primeiros tempos de conformismo aos desejos dos meus seguidores, tudo aquilo que passava pela minha cabeça tinha começado a pular pela boca afora. Meus seguidores rapidamente ficaram embasbacados com tanta grosseria. E o número deles diminuía dia a dia. 

 

Em meio a uma crise de raiva, resolvi encerrar minha conta no insta e abandonar o uso da AI. Eu iria voltar a escrever os contos psicopáticos e pessimistas de outrora usando um novo pseudônimo, e recuperaria assim o meu equilíbrio mental. A vida voltara a me sorrir, juntamente com os meus três leitores fiéis do passado. Os demais ignoravam o meu novo blog. Embora houvesse um link entre este blog e o meu blog original, ninguém parecia achar que valesse a pena seguí-lo. Mas o que fazer, se não é possível agradar a todos? O melhor mesmo é agradar a si próprio!


Para escutar a versão narrada, por favor clique no link abaixo:
https://youtu.be/-klKagvSik4

Voltar

Receba os novos contos
em primeira mão