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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Fome de amor

Em uma linda manhã de sábado, a ida à cinemateca para ver o filme belga "Here" traz à lembrança antigas histórias mal digeridas.

fome de amor

Dias lindos como o de hoje sempre me dão vontade de pegar o carro e viajar, de preferência sem destino. Parando aqui e acolá, sem compromisso ou hora marcada. Mas a minha viagem de hoje foi curta e terminou na sala escura de uma cinemateca, como tem sido a minha rotina dos sábados de manhã desde que entrei para o clube de cinema de minha cidade. 

Tenho uma teoria de que filme só é bom quando mexe com as suas entranhas e desperta medos, lembranças. O filme de hoje, “Here”, cumpriu com a sua função. Me fez lembrar de uma viagem de carnaval de alguns anos atrás, quando alugamos uma casa em Porto Seguro. Tudo era uma questão simples de aritmética:  casa de três quartos, com as despesas divididas entre três casais de amigos. Mas na última hora se juntou ao grupo uma conhecida, que tinha acabado de brigar com o namorado e estava inconsolável. Apenas a alegria dos blocos carnavalescos e dos trios elétricos do litoral baiano seria capaz de aplacar a sua dor, dizia ela. “Pode ser”, um dos casais respondeu por todos nós, “afinal o sofá-cama da sala está desocupado”. E assim ficou decidido.

Poucos dias antes da partida, eu e meu namorado soubemos que ela viajaria de carro conosco, pois éramos as pessoas do grupo que a conheciam melhor. Na verdade, eu a conhecia muito pouco, e meu namorado havia conhecido ela e suas amigas pouco antes, durante o tempo em que estávamos brigados. Mas nada disso foi capaz de nos perturbar. Logo estávamos os três viajando em um carrinho, digamos assim, acolhedor. Ela, sentada no meio da poltrona traseira, vinha com o rosto no exíguo espaço entre o meu e o de meu namorado, falando alto para ser bem entendida.

A distância entre o Rio de Janeiro e Porto Seguro é de 1100km, o equivalente a 15 h de estrada. Durante este tempo de viagem, reparei que ela aparentemente havia se imposto o desafio de nos distrair contando toda a história de sua vida e de nos avisar quando chegasse a hora de se alimentar. Até então, eu nunca havia visto alguém com tanta fome.

Lá pela metade da viagem, ela declarou de modo bombástico que meu companheiro a lembrava muito de um antigo namorado que havia morrido no auge da paixão. A partir de então, caro leitor, fui relegada ao mundo dos invisíveis. Não havia o que eu dissesse ou fizesse que fosse capaz de arrancar uma reação da nossa colega de viagem. Toda a atenção dela era voltada para ele, e meu namorado vibrava com isso.

Quando chegamos a Porto Seguro, saímos uma vez mais para comer. Pouco depois ela entrava em êxtase nos mercados de artesanato da orla, experimentando todos os chapéus e colares em busca do seu olhar de aprovação. Quando afinal voltamos para a casa que havíamos alugado, ela se negou a dormir no sofá-cama da sala. “Tenho medo!”, disse ela, com os olhos cheios de lágrimas. “Não suporto dormir sozinha em um lugar estranho. Posso dormir no quarto com vocês?”.

Meia hora mais tarde, ela roncava sobre uma pilha de colchonetes, enquanto eu examinava com os olhos estirados de raiva as fissuras do teto e do meu orgulho. Antes do sol nascer, percorri a pé os poucos quilômetros entre a casa alugada e a estação rodoviária. Vinha arrastando pelas ruas de paralelepípedo a minha mala de rodinhas, cheia de biquinis e saídas de banho que não haviam visto a cor do mar. Para trás eu deixara apenas um bilhetinho. “Divirtam-se”, dizia ele. Minha reação obviamente arrasou com o carnaval da vadia e do eu ex-namorado e causou espanto em meu companheiro de viagem para o Rio. Sentado na poltrona ao meu lado vinha um estranho, que passou a primeira hora da viagem de ônibus me fazendo perguntas, no esforço vão de entender por que uma pobre mortal com cara de choro abandonaria a cidade com o melhor carnaval do nordeste brasileiro justamente no sábado de carnaval.

A partir deste evento eu viria a entender a expressão “fome de homem” e nunca mais suportaria a companhia de uma mulher de apetite voraz próximo a um namorado meu. A simples lembrança dos atos desesperados daquela que nem ao menos nutria um real interesse pelo meu namorado, me retorce as entranhas. Hoje prefiro a companhia das anoréxicas...

Se você já viu “Here”, deve estar se perguntando por que diabos este filme me trouxe de volta as lembranças dessa criatura bulímica de amor, não é mesmo? Estranhamente, o drama de um homem e de uma mulher que vivem suas vidas em completa solidão e que lutam contra a própria apatia no processo da sedução me fez lembrar dessa minha história pessoal. Tão diferente do casal que passa o intervalo todo do filme tateando em um mundo de descobertas, entre som dos respingos da chuva e do canto dos pássaros que ecoam pelo surround sound da cinemateca. 

O filme é uma lembrança para todos nós de que o dia da descoberta do amor também chega para os tímidos. Mas que dia será este?

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Tags: fome de amorHerecinemateca

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