Loading...

Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

Blog

Veja nossas postagens

Filha temporã

mulher idosa repousa ao lado de uma dolina ao entardecer

 Naquela noite de outubro houve uma tempestade fortíssima na região onde Nair morava, na Serra da Bodoquena. Após uma sequência de trovões que sacudiu o solo como se uma besta pré-histórica lutasse por se libertar do ventre da Terra, veio um tornado, seguido de granizo e chuva torrencial. A hora de deitar-se foi chegando e, como a tempestade não cedesse, Nair apelou para todos os santos: para um deles, pediu que o telhado aguentasse a ventania e o granizo, para o outro, que a casa não inundasse, e a Deus-pai-todo-poderoso implorou que protegesse ‘essa sua velha filha que vive solitária nos confins de seu quadrado de terra’.

 Na manhã seguinte, ao olhar pela janela da cozinha, ela descobriu desolada que sua pequena lavoura estava arrasada. “Que judiaria! Todo o trabalho de lavrar a terra e semear a soja foi desperdiçado...”, comentou consigo mesma e saiu para investigar o estrago com sua cuia na mão. Foi nesta ocasião que ela a viu pela primeira vez: num baixio do terreno, onde a camada de solo mais superficial tinha sido levada pela enxurrada, a rocha calcárea estava exposta, exibindo um par de fraturas abertas. Pelas bordas destas fraturas precipitava solo adentro um fio de água turva que escoava das partes mais altas do terreno. “Que coisa mais linda”, ela exclamou em voz alta, “uma dolina-bebê!”.

 O agrônomo que veio após o almoço avaliar o estrago feito pela chuva, ao ver a dolina que começava a se formar no baixio, disse sem pestanejar, “A senhora tem de mandar cimentar esse buraco, senão todo o solo no entorno vai escoar e formar uma grande voçoroca.” Claro que não, Reginaldo!”, ela respondeu, “Nunca imaginei que eu veria uma dolina em carne e osso, ainda mais aqui, dentro de minhas terras. Esta me pertence, vai crescer e se desenvolver como bem lhe aprouver”.

 Nair era uma geóloga amadora que em sua conta do Instagram colecionava fotos de dolinas famosas da China, Estados Unidos e das Bahamas, que um dia haviam colapsado a céu aberto, engolindo casas, carros e tudo o mais o que houvesse nas suas proximidades. A partir daquele verão, maravilhada com a nova descoberta em seu terreno, ela desenvolveu o hábito de ir matear com sua dolina todas as manhãs bem cedinho. Ía acompanhada de sua vira-lata caramelo, que, com o olhar medroso, se mantinha a uma distância respeitosa. Toda semana algum parente distante aparecia, atraído pelos comentários de que grupos de geólogos da Petrobras visitavam seguidamente as dolinas da região, “Será que a Petrobras encontrou petróleo nestas terras? A Nair vai receber uma fortuna se isso for verdade. Vamos ficar todos ricos!”. 

 À medida que o nível freático da região baixava devido ao uso das águas subterrâneas na irrigação das lavouras de soja, o buraco ia-se alargando. Com o tempo, ela teve de mandar erguer uma cerquinha no entorno, para evitar que suas cabras caíssem lá dentro por acidente. Pouco depois, ela abandonaria o cultivo da soja, “Nem pensar que eu vou dar esta água cheia de agrotóxicos para Dodô, coitadinha”. Os anos se passaram e os geólogos da Petrobras e das universidades que costumavam fazer investigações em seu terreno foram impedidos de continuar visitando o local. Ela passara a proteger a dolina da curiosidade dos estranhos: as visitas agora ficavam restritas à sala de estar.

 Nas raras vezes em que sua irmã aparecia lá para vê-la, ela perambulava em torno da cerca, sem entender a fascinação de Nair pela dolina. “Lá nas terras de Leopoldo tem um buraco desses onde o povo joga todo o lixo. Outro dia descobriram que alguém tinha invadido o terreno dele à noite e jogado um carro roubado lá dentro”, e assim dizendo descartou no buraco a embalagem da barrinha de cereal que estava comendo. Ao ver aquele ato de desfeita, Nair perdeu a cabeça e atacou sua irmã com unhas e dentes. “Imagine tratar Dodozinha como uma lixeira! Suma daqui e não reapareça tão cedo”, ela gritou com a voz esganiçada e os cabelos em alvoroço.

 Aos 70 anos, Nair e a dolina eram inseparáveis. “A maternidade tardia em geral faz isto com as mulheres: lhes torna guerreiras imbatíveis na luta para proteger suas crias. Se algo acontecesse com minha Dodozinha, a natureza não me daria outra chance”, ela dizia a quem quisesse ouvir. Com o tempo, ninguém mais aparecia para visitá-la, afora o carteiro e a contadora, que todos os anos vinha lhe dar os parabéns pelo seu aniversário e lembrá-la de que a época do pagamento do imposto de renda estava chegando. 

 Todos os dias, após concluir os afazeres de casa, Nair passava o tempo livre ao lado de sua dolina, “É imprescindível que eu acompanhe o seu crescimento de perto”, ela dizia enquanto cultivava canteiros de flores nas proximidades. Nas noites quentes de verão, ela colocava uma espreguiçadeira junto à borda da dolina e, com uma taça de vinho branco gelado em suas mãos, as duas passavam incontáveis horas em um mudo companheirismo. Nas raras ocasiões em que a solidão a angustiava, Nair recontava em voz baixa e monótona as suas aventuras do passado, “Eu sei que posso confiar em você, Dolly. Afinal, você puxou a mim, a sua boca é um túmulo”.

 A dolina cresceu excepcionalmente rápido e, no seu interior, foi-se desenvolvendo uma vegetação luxuriante entremeada de ninhos de pássaros e bandos de morcegos. A cada entardecer, Nair admirava em transe o momento em que os bandos de araras vermelhas que moravam no seu interior alçavam vôo à caça de insetos. Era um espetáculo sem igual, que havia se tornado famoso nas vizinhanças.

 Em uma noite clara de verão, em que Nair se sentia perturbada por suas memórias do passado, ela decidiu deitar-se ao ar livre em sua cadeira espreguiçadeira, envolta em sua colcha de piquê branco, e observar o percurso da lua cheia no céu. O tremor de terra, quando se iniciou, foi tão sutil que ela nem se deu ao trabalho de levanta-se, apenas perguntou baixinho, com sua mão espalmada no solo, “Calma, Dodô. Você assim como eu se sente perturbada nas noites de lua cheia? “.  A resposta veio retumbante: uma faixa larga de rocha no entorno da dolina colapsou de uma só vez, levando para o seu interior imensos blocos de rocha calcárea e Nair, envolta em sua mortalha. 

Os vizinhos, consternados por aquela desgraça que poderia ter atingido qualquer um deles, reuniram-se às margens da dolina para realizar uma cerimônia fúnebre à ‘estimada Nair, que como ninguém, soube viver e morrer em contato íntimo com a natureza’.

 

Conto de terror inspirado no conto "Nada de carne sobre nós", de Mariana Enriquez 

 

Voltar

Tags: dolinacontato intimo com a naturezasolidãomaternidadegeologia

Receba os novos contos
em primeira mão