Filha da enchente
Sou filha da enchente de 1941, a maior que já atingiu Porto Alegre. Durante os meses de abril e maio daquele ano, o Guaíba subiu 3,76 m acima do nível normal e deixou um quarto da população desabrigada, sem luz e sem comida. Os 22 dias que durou esta tragédia foram tempos difíceis. Mas o pior ainda viria depois que as águas baixaram, quando boa parte da população adoeceu de leptospirose. Ainda que tenha sido uma grande tragédia e que meu pai vivesse encharcado, correndo de um lado para o outro para cuidar dos parentes, houve momentos de doçura. Nove meses depois eu nascia.
Meus pais moravam na rua Pelotas, em um apartamento de primeiro andar. No auge da enchente, minha irmã passava horas olhando da janela da sala as canoas que flutuavam pela rua, à espera de que as águas baixassem e ela pudesse retornar à escola. Logo que foi possível sair de casa, meu pai foi em busca de comida. No mercado, ele comprou tudo o que fosse possível, não importava o quê. Além do desabastecimento, tudo ficou muito caro. Muitos comerciantes aproveitaram para cobrar uma fortuna pelos poucos produtos que tinham em suas prateleiras. Para que o povo não fosse explorado, o governo teve de tabelar os preços dos alimentos. Ainda assim, ao final da enchente, 117 comerciantes foram presos na Casa de Detenção por não respeitar a tabela.
Nos anos que se seguiram à enchente, nos mudamos para o alto da rua da Ponte, que hoje se chama Riachuelo. Nosso apartamento ficava próximo à confeitaria Rocco e ao quartel do sétimo, onde meu pai fez o serviço militar. Nessa época minha mãe tinha várias amigas, com quem se reunia toda a semana para conversar e tomar chá, enquanto faziam os seus trabalhos manuais. No dia dessas reuniões, íamos de bonde logo após o almoço. Sonolenta pelo embalo do bonde, que me jogava de um lado para o outro, eu me encostava no corpo morno de minha mãe e vinha cochilando pelo caminho. Ainda me lembro do cheiro suave de alfazema que exalava das suas roupas.
Enquanto minha mãe e suas amigas faziam crochê e bordavam, eu e minha irmã lutávamos contra a modorra decidindo quais doces iríamos comprar mais tarde. Nestes dias que passeávamos pelo centro da cidade para visitar as amigas de minha mãe, aproveitávamos para ir às casas de armarinhos à procura de fitas, linhas e viés para colocar em nossas roupas e, no caminho de volta, passávamos na confeitaria Neugebauer ou na Schramm, onde comprávamos uma grande bandeja de doces que levávamos para comer em casa, com meu pai. Neste tempo, todas as nossas roupas eram feitas por minha mãe na sua velha máquina de costuras Singer à pedal, até mesmo nossas roupas de baixo. Durante alguns anos usamos várias peças que foram confeccionadas com dois rolos de tecido recuperados da enchente e depois lavados repetidas vezes, até que todas as manchas de água embarrada saíssem. Apenas as roupas de festa eram compradas prontas, lá na loja A Moda, situada bem no centro da rua da Praia.
Às vezes, quando o trabalho doméstico diminuía, ou minha mãe se entediava das costuras, ela nos levava para um passeio mais longo de bonde. Nestes dias íamos até o Prado Velho. Nos dias que dávamos sorte, podíamos até mesmo ver algum cavalo treinando. Eu, que sempre fui louca por cavalos e que passava as tardes grudada no rádio ouvindo a transmissão das corridas, ficava radiante nestas ocasiões. Lembro que o momento mais impressionante da corrida de cavalos, quando parecia que o radialista quase perdia a cabeça de tanta emoção, era quando os cavalos passavam pela curva dos olhos d’água. Anos depois, as pistas de corrida foram removidas daquela área e o lugar foi transformado no que hoje é o Parcão. Onde ficava a curva dos olhos d’água, agora existe um lago artificial. Que saudades tenho dos tempos das corridas! Aquele era um lugar vibrante, cheio de energia. Hoje é um extenso parque brutalmente cortado ao meio por uma avenida, por onde passam todo dia milhares de carros.
Nos fins de semana, quando meu pai se juntava a nós, íamos ao Campo da Várzea, que se estendia ao longo do Caminho do Meio, onde hoje são o Parque da Redenção e a av. Osvaldo Aranha. Nestes dias, minha mãe era toda sorrisos graças à atenção de meu pai. Nós, as crianças, éramos invadidas por uma sensação de desorientação, aquela que toma posse da gente nos meses de férias, quando desbravamos terras distantes. Mas meu pai, naqueles dias, parecia lutar contra um ataque de melancolia, o chamado banzo que se apoderava dos escravos longe de sua África natal. O ritmo intenso da sua vida em Porto Alegre e o excesso de responsabilidades no trabalho faziam com que ele se isolasse de nós e vivesse de mau-humor. Isso somente mudava durante as férias, quando íamos a Erechim visitar os parentes, ou nos raros momentos que passávamos no Campo da Várzea.
A viagem de bonde até a Várzea era longa e cheia de expectativa. Eu e minha irmã íamos admirando a paisagem e lendo os reclames. O nosso reclame predileto era invariavelmente declamado em voz alta, para deleite dos demais passageiros: “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado. E, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite. Salvou-lhe o rhum creosotado”. Quando finalmente chegávamos ao nosso destino, víamos à nossa frente uma grande extensão de terra coberta de mato onde o gado, que tinha sido trazido pelos tropeiros desde as fazendas do interior do estado, era deixado para descansar e ganhar peso no pasto, antes de seguir para o abate. Grandes manadas de boi passeavam assim livres vários dias ao longo dos trilhos do bonde, vigiadas pelo olhar zeloso dos tropeiros que ficavam ali acampados. No caminho do meio, logo ao lado, ficavam estacionadas as carretas de boi.
Nossa, relembrar todas estas histórias me deixou emocionada. Às vezes até me esqueço que já vivi tantas mudanças, tantos momentos bons e despretensiosos. Entre todos, esses foram os melhores. Dia desses eu te conto das nossas férias em Erechim. Mas agora, querida, me deixa dormir um pouquinho.
Obs.: a imagem que ilustra esse conto foi gerada por IA. Apesar dos recursos desta técnica, não foi possível obter uma imagem de bonde com o aspecto dos daquela época.
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