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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Viagem ao futuro com câmbio automático

mulher, sua cachorra e sua mãe se espantam com as maravilhas de um carro moderno

 

Lá se vão dez anos desde a última vez em que troquei de carro. E isto deve ser visto como um elogio ao meu possante: ele nunca me deu dor de cabeça nestes anos. Os anteriores duraram cinco anos e saíram malfalados. Meu Honda, no entanto, foi bravo guerreiro. Ele aguentou minhas barbeiragens e falta de cuidados, e, nos últimos anos, minha falta de interesse. 

 Nos últimos três anos em que morei no Rio, pensei seriamente em deixar de ter um automóvel, pois o meu quase não saiu da garagem desde a pandemia. Aliás, tenho observado que é cada vez maior o número de pessoas que desistem de ter carro. Entre meus antigos colegas de trabalho, alguns já preferiam andar de transporte público ou Uber durante a semana, e alugar carro para as viagens curtas de fim de semana. 

 Com a minha vinda para Porto Alegre, contudo, mudaram alguns dos meus paradigmas. Esta cidade não é tão bem servida de transporte público quanto o Rio. Aqui, se eu pretender me deslocar de taxi, sou capaz de ficar um bom tempo quarando no sol enquanto espero um taxi livre passar. Os outros motoristas passam por mim e olham pela janela curiosos, fazendo cara de ‘o que será que esta mulher está fazendo ali parada?’. Este negócio de pegar taxi na rua já era...

 Aqui, nem o tele táxi funciona direito em feriados e dias de chuva; nestes dias é impossível conseguir um carro. Apesar disso há usuários fiéis, como minha mãe, que não pretendem de deixar de usar este serviço tão breve. “A atendente do tele táxi me reconhece pela voz!”, me diz minha mãe toda orgulhosa. “Mesmo após tanto tempo sem sair de casa durante a pandemia...”, ela arremata o assunto. Passei muito tempo, presa de um mal-estar, tomando coragem para matar suas ilusões, até que um dia falei “Mãe, não é que a atendente reconhece a tua voz. É que quando tu ligas para o tele táxi, a atendente enxerga no monitor o teu número de telefone, teu nome e endereço”. “A atendente pode não me reconhecer, mas os motoristas já me conhecem”. E pronto, assunto encerrado.

 Com a vinda para o sul, eu voltei a usar mais o meu carrinho. Meu velho Honda tinha câmbio manual e quase nenhum frufru, por isso eu estava bem desatualizada com relação às comodidades de um carro atual. Comecei a reparar que, nas ladeiras, nenhum carro dava aquela andadinha para trás quando engatava a primeira ao abrir o sinal. Só eu. Fui investigar e descobri que carro com câmbio automático tem Hill Holder, um assistente de partida em aclives, que não deixa o carro escorregar. Uma maravilha!

 Resolvi então alugar um carro com câmbio automático antes de comprar o próximo, para ir me acostumando com a ideia e domando o pé esquerdo. Neste fim de semana, descobri que eu estava perdida em algum lugar do passado! Para começar, o carro não começou a andar quando dei partida e acelerei. Passei alguns minutos tentando descobrir o que eu estava fazendo de errado até que percebi que eu não havia colocado o cinto de segurança. “Será?”. Sim, pois bastou afivelar o cinto que o carro começou a andar. Além disto, agora tenho de colocar a seta a cada mudança de pista, senão o carro insiste em me puxar para a pista em que eu vinha dirigindo.  

 Peguei a estrada e reparei que ninguém reclamava de nada dentro do carro, coisa rara. Embora minha mãe estivesse agarrada no puta-que-pariu, ela seguia tranquila e confiante. “Está bom o ar-condicionado?”, perguntei. “Muuito bom, e o carro, que macio! Parece que ele tem almofadinhas nas rodas. Até a vista é boa aqui do alto.”. Olhei pelo retrovisor e vi que minha cachorra estava deitada relaxada sobre o banco, ao invés de lutar contra o enjôo como ela sempre faz. Que paz! 

 Já chegando perto de casa, tive de parar na pista, pois o carro à minha frente manobrava para estacionar. De repente me dei conta do toc-toc-toc-toc que soava dentro do carro. Era o pisca-alerta, que havia sido ligado automaticamente! “Puxa, hoje em dia não dá nem para ignorar as regras de trânsito. O carro as segue à sua revelia!”, comentei com minha mãe, entre espantada e mal-humorada. Não quero nem pensar em como será dirigir um carro no futuro. Eu imagino que alguém que necessite do carro para ir ao trabalho resolver um problema urgente no fim de semana terá problemas. Após dar partida no carro e inserir o seu destino no computador de bordo, este fará uma breve checagem do seu contrato de trabalho, da sua situação bancária e dos seus indicadores de saúde e poderá se negar a andar: “Seu último exame de saúde indica alto grau de estresse. Como seu contrato de trabalho não prevê horas extras no fim de semana e sua conta bancária saiu do vermelho, você deverá dedicar este domingo às atividades de lazer. Estou cancelando o destino programado e mudando a rota para um passeio pelo litoral. Vamos a Xangrilá! Afivele o cinto e aproveite a viagem.” 

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Tags: hill holdercambio automáticoautomóveltroca de carroviagem para o futuro

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