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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Um quarto de conto de fadas

 

 

Falta pouco tempo para o meu aniversário. Enfim vou fazer 30 anos. Semana passada a Patrícia, minha amiga psicóloga, me falou para eu ficar firme, disse que esta era uma fase de crise na vida da maioria das mulheres: desejo de ser mãe, sucesso na carreira, uma relação estável. Mas nada disso me tira o sono. Num mundão tão grande como esse, tem tanta coisa para ser vista e experimentada antes de lançar raízes! “Daise, se você estiver cansada pode deixar que eu dirijo um pouco”, interrompo meus pensamentos para falar com minha colega de trabalho com quem venho atravessando o Brasil em busca de aventuras. “Ainda tem um bocado de chão até Alto Paraíso”. 

 

- Não precisa, não. Mas você podia ligar para a pousada para ver se está tudo certinho com a nossa reserva. 

 

- A moça da recepção disse que a pousada está lotada, pois está havendo um workshop de bioenergética no salão de eventos. Mas disse que tem um casal fazendo check-out antes do previsto e que ela vai poder acomodar a gente.

 

Acabamos de chegar na pousada e, enquanto a Daise se alonga e hidrata, eu vou passear pelo local para ver como são as acomodações. “Olha só Daise, finalmente demos sorte. A pousada é super charmosa. Cada chalé tem um só quarto. E lá no centro do terreno, eu vi um chalé maior destinado à meditação, com as paredes todas decoradas com quadros de divindades. Vamos deixar as malas aqui mesmo na recepção da pousada e aproveitar o dia antes de o quarto desocupar? O guia disse que tem uma cachoeira legal, lá para os lados de São Jorge, a Catarata dos Couros”. Contratamos um guia local e seguimos por mais uma hora de estrada, até chegar à catarata.

 

“Nossa, que mico! O guia trouxe a gente numa catarata de nudismo, cheia de Rajineeshees pelados”, Deise comenta comigo, enquanto agarradas às nossas coisas, olhamos curiosas o grupo de nudistas se banhando muito à vontade a nossa frente. Um dos rapazes do grupo se aproxima. Com os braços abertos e um sorriso sedutor, ele nos convida a nos juntarmos aos demais para partilhar da comida e bebida que eles trouxeram. Ele nos diz que terá muito prazer em discutir conosco o caminho para a iluminação espiritual, de acordo com os preceitos de Osho.

 

Quando enfim chegamos no nosso quarto na pousada, já é tarde. Vínhamos às gargalhadas, comentando as histórias daquela tarde. Após todas as aventuras do dia, nenhuma de nós duas tem energia para desfazer as malas, ou tomar banho antes de sair para jantar. E assim, vamos ficando por ali mesmo, conversando sobre tudo e todos. Os ânimos lentamente se acalmam enquanto os vapores de álcool se dispersam. O céu muda lentamente dos tons alaranjados do pôr-do-sol para uma noite estrelada. O canto dos insetos e dos pássaros entra pela janela aberta do quarto junto com o ar morno e seco da estação. Apesar do evento que está ocorrendo na pousada, quase não se vê gente passando. “Esse povo da bioenergética é tranquilo”, comenta Daise. “Acho que hoje vamos dormir bem. Para garantir um boa noite de sono, o que você acha de tomarmos um vinhozinho no jantar?”

 

Nas cercanias da pousada, descobrimos um restaurante de comida macrobiótica bem conhecido na região. O vinho, apesar de não constar no cardápio, foi comprado pelo garçom no armazém mais próximo e servido com muita cerimônia em copos de vidro. O piquenique que fizemos na catarata já foi digerido há muito tempo, e a fome agora é negra. Enquanto o jantar não chega, bebemos meia garrafa vinho acompanhado de pãezinhos integrais e pastinhas e conversamos sobre nossas histórias familiares. Daise, assim como eu, é filha de piloto de avião e, descobrimos durante a conversa, os dois devem ter se conhecido quando jovens. Na mesma hora, ela decide ligar para o seu pai e averiguar essa história. “Ybbi, tu não vai acreditar no que eu vou te dizer. Os dois estudaram na mesma turma na escola de pilotos da Varig, e eram superbons amigos. Meu pai me contou que ficou chocado com o acidente que teu pai sofreu. Disse que da turma deles, muitos pilotos morreram em acidente de aviação” ela me conta com cara de espanto e voz alterada.

 

- Que coincidência estranha! Como é que a gente pode descobrir por acaso uma coisa dessas. Duas meras colegas de trabalho que decidem viajar juntas tem suas histórias unidas a mais de uma geração.

 

Acabamos o jantar em silêncio, tomadas por um humor meio sombrio. Aproveitamos que o vinho nos deixou levemente tontas e decidimos dormir cedo e deixar para desfazer as malas no dia seguinte. O quarto em que estamos é simples, mas bem pensado. Agora que já é noite, vemos que na cumeeira do telhado tem um grande cristal de quartzo incrustado, que deixa passar a luz tênue irradiada pela lua. O efeito é bonito, apaziguador, faz lembrar uma cena de conto de fadas. Meu último suspiro é gasto no esforço de beber um copo d’água e apagar a luz, e imediatamente caio no sono.

 

Sou desperta por um tapa na sola do meu pé. Estou deitada de bruços e presa de uma estranha paralisia. Meu corpo inteiro vibra com a passagem de uma onda pela minha coluna. Uma onda que sobe desde o cóccix até o pescoço, e então baixa.  Sobe e baixa. Somente o meu cérebro funciona. Mesmo com todo o meu esforço, não consigo virar meu rosto em direção à cama da Daise. Quando a minha voz por fim sai, trêmula, pergunto “Que foi Daise? Por que você me acordou?”. 

 

- Eu não te acordei, Ybbi.

- Ué, quem foi que me deu um tapa no pé então?

- Ninguém. Não tem ninguém nesse quarto. Tu teve um pesadelo.

 

Quando eu finalmente consigo virar o rosto, vejo ela deitada na cama, com o rosto voltado para a parede. Resolvo então esquecer esse assunto e voltar a dormir, mas agora virada de costas no colchão. Pouco tempo depois sou desperta por um novo tapa no pé. Dessa vez, vejo à minha frente um espectro de luz que flutua no ar, ao pé da minha cama. Parece uma mulher vestindo uma camisola muito ampla e longa, seus cabelos sobem como cipós de luz até o cristal incrustado no telhado. Presa de pavor, tento outra vez acordar Daise na cama ao lado, mas sou incapaz de me mexer ou falar. Quando afinal viro o rosto e digo a ela o que está acontecendo, ela me repreende seca, “Volta a dormir, Ybbi. Tu tá sonhando”.

 

Decido rezar dois pai-nosso e duas ave-maria para ver se o sono volta e consigo dormir em paz. Mas o medo é tamanho que acabo rezando bem mais. Acordo de manhã, exausta. Por mim virava de lado e voltava a dormir, mas Deise me chacoalha enérgica, “Vamos que tem muito lugar bonito para a gente conhecer hoje”. “Sim”, respondo desanimada. Bem que eu gostaria de comentar com a Daise sobre o que aconteceu na noite passada, mas ela não gosta destas conversas. Suspiro fundo e engulo meu último naco de pão, pois vejo o nosso guia que se aproxima para mais um dia de aventuras. “Quais são os planos para hoje?”, Daise pergunta para ele. “Hoje vamos conhecer o aeroporto de OVNIS que tem aqui na região”, reponde ele.

 

“Socorro! Me levem pra casa!”, eu saio desperada em direção ao meu quarto, cobrindo os olhos com as mãos, sem que ninguém entenda o que está acontecendo comigo.

 

 

 

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Tags: Rajneeshespiritobioenergética

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