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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Um ano em Paris

Torre Eiffel fotografada por Henri Silbermann (from: www.barewalls.com)


Bom, finalmente decidi entrar no século 21: estou criando meu blog. Começo com minhas recordações do ano em que morei em Paris. Você deve estar pensando ´Que chique!´, não é? Bem, nem sempre foi tão chique assim, mas o balanço foi sem dúvida positivo.
A companhia para a qual eu trabalho me mandou para a França para uma espécie de ano sabático, com o objetivo de me atualizar profissionalmente em um centro de pesquisa francês. O registro das minhas vivências que segue abaixo é meio cáustico-noir. Não que minhas recordações da França sejam amargas, pelo contrário. Mas é que a minha alma é meio assim.

Dezembro de 2007

Cheguei à Paris semana passada e pela primeira vez em muito tempo eu me sinto chez moi. Gosto das grandes cidades, da impessoalidade, do metrô que me larga na porta de qualquer lugar onde eu queira ir. Amo esse site do mappy.fr que me informa todos os trens, ônibus e metrôs que eu devo pegar, seus horários e conexões. É um luxo! Amo o simples fato de que todo o mundo fala ´Bonjour! ´antes de me dizer qualquer outra coisa e que ao se despedir invariavelmente vem um ´Au revoir. Bonne journée´. E o que dizer dessas voltinhas todas que eles dão para obter as coisas mais simples: J'aimerai bien avoir ... Mesmo as crianças pequenas são educadas, e se expressam com uma graça incrível, que parece ter sido adquirida já na mamadeira.
Caí de amores imediatamente por toda essa organização e educação formal que abundam por aqui e que tornam a vida do dia-a-dia tão mais fácil. Amo o livro de bolso a 2 euros e a coca-cola a 4 euros. Enfim, cada coisa no seu devido lugar.
Amo esses negros enrolados em suas túnicas escandalosas com seus penteados luxuosos, que falam dentro dos trens em alto e bom som na sua língua natal, causando profundo estupor nos franceses, tão contidos os pobrezinhos. E os judeus sefardim com seus cachinhos encaracolados, tão sérios desde pequenininhos. E os árabes, com sua pele mate e sua cultura exótica. E finalmente as muçulmanas, que desembarcam em grupos de seus carros com chauffeur, envoltas em suas burkas negras, sedentas por mais uma orgia consumista nos Grands Magasins do Boulevard Haussmann. O mundo todo desfila pelas ruas de Paris sem que os parisienses pareçam registrar sua passagem. Se fosse por aqui, esses estrangeiros trajados à caráter seriam examinados com a mesma atenção descarada que dedicamos aos animais do Zoo, com dedos apontados e risos disfarçados.
Paris é cosmopolita.


Natal 2007

Na casa onde eu passei o Natal todo mundo era brasileiro. Fui muito bem tratada, mas Natal é uma coisa para passarmos com a nossa família, se não for assim resta sempre um gostinho meio estranho. Me senti como se tivesse invadido a casa alheia. Mas eles foram super gentis.
O apartamento deles é uma graça. Será que eu vou conseguir me instalar direitinho em Paris?
O cachorro labrador dos meus amigos se apaixonou por mim. Agora preciso avançar no reino animal. Se depois do cachorro eu conquistar o macaco, dai para o homem é um pulinho!

Meu studiô

Eu tive uma dificuldade incrível para conseguir um apartamento para alugar. Além da oferta de apartamentos ser pequena, tudo aqui é tão caro! Acabei alugando no banlieu de Paris um studio, que é um apartamentozinho de 24m2 onde coexistem sala, quarto e um canto-cozinha. Tem também um banheiro, é claro, mas as instalações são todas um pouco franciscanas. Agora o maior luxo do apartamento é o fato de eu ter o direito ao uso de um quartinho que serve de depósito situado no subsolo do prédio. A cave, como este depósito é chamado, tem 6m2 e já está cheia de coisas abandonadas pelo antigo morador.
O prédio é dos anos 70 e tem uma bela área de lazer cheia de árvores nos fundos do terreno, mas, como o tempo está frio, eu nunca vejo ninguém no jardim.

Ano Novo

Na virada do ano resolvi ficar sozinha na casa de Gilberto, onde eu estava hospedada, pois eu estava exausta. Comprei uma garrafa pequena de champanhe Demoseille, uns docinhos divinos e um bonsai de ginseng pra me fazer companhia. Foi muito bom.

Mas que pocilga!

Nas férias coletivas que o instituto de pesquisa deu a seus funcionários na semana entre o Natal e o Ano Novo eu aproveitei inicialmente para passear um pouco por Paris, que eu conhecia muito mal. Mas de quinta-feira pra cá foi pauleira. Hoje afinal eu recebi as chaves do apartamento mobiliado que aluguei e pude fazer uma inspeção melhor dos seus móveis e utensílios. Descobri que a maior parte do mobiliário foi provavelmente catada na rua pelo antigo morador, um estudante de doutorado iraniano. O sofá-cama está quebrado e fede tanto que não dá para sentar nele, quanto menos dormir. A mesa de jantar é algo do outro mundo. Tão lascada e instável que não agüentaria uma única refeição até o fim.
Dentro da cave, eu descobri umas tralhas que o locatário anterior vendeu à proprietária por 100 euros. Entre elas, uma televisão usada que veio do Irã e não funciona aqui na França, pois o sistema local de televisão é outro.
Ao final desta primeira visita ao apartamento, eu joguei tanta coisa fora que foi até engraçado. O resto eu enfiei na cave. Só sobraram uma cama, dois armários, uma geladeira e um microondas. Amanha vou às compras.
Como vou precisar de um carro para transportar minhas compras para o meu novo apartamento, resolvi falar com a dona da casa onde eu passei a véspera de Natal para pedir um favorzinho. Lembrei a ela da tão oferecida carona para ir ate à Ikea, uma loja de moveis que é longe pra cacete. Ela foi super gentil e imediatamente marcou dia e hora para irmos lá.

O novo apartamento

Ontem fui com minha nova amiga à Ikea onde comprei alguns móveis novos e acessórios em geral para dar uma cara de lar ao meu novo apê. A loja é um desbunde, tem de tudo um pouco e os preços são ótimos. Que pena que eu não posso carregar tudo pro Brasil. Fui também ao magasin Castorama, o paraíso da bricolagem. Quem é do tipo faça-você-mesma como eu sou, fica doido com tantas ferramentas, acessórios, tintas, madeiras cortadas sob a medida dos seus sonhos. Uma coisa de louco!
Hoje tive de passar dia inteirinho aparafusando cada móvel com a ajuda do seu manualzinho, pois vem tudo desmontado. Mal tive tempo de parar para comer.
Fiz tudo com apenas as 3 ferramentinhas ordinárias que vieram junto com os móveis que comprei, enquanto sonhava com a super caixa de ferramentas que deixei no Brasil. A palma de minha mão acabou estourando toda em bolhas devido ao esforço feito com as ferramentas inadequadas. Decidi que, na próxima vez que eu for à Castorama, vou abrir a mão e comprar um conjunto básico de ferramentas para mim.
A montanha de lixo que eu tinha gerado ao final do dia é algo inacreditável. Tive ainda que carregar todas as embalagens para a garagem do prédio e colocar cada coisa na sua respectiva lata, separando plástico de vidro, papel, e lixo orgânico. A garagem do prédio parece uma usina de reciclagem. A cada dia a prefeitura coleta um tipo de lixo diferente. Enquanto eu separava o lixo para reciclagem eu me lembrava do meu vizinho de porta em Salvador que deixava o saco de lixo aberto em frente a sua porta do seu apartamento até que o empregado do prédio se dignasse a subir para recolher o lixo de todos os moradores. As moscas zumbiam enlouquecidas em torno daquele banquete de lixo orgânico misturado com garrafas de vidro e os jornais velhos. A visão e o cheiro do lixo me embrulhavam o estômago a cada vez que eu passava pelo hall do apartamento. Como é será que esse baiano se comportaria se viesse morar no meu novo prédio?

Minha primeira noite

Na primeira noite em que dormi no meu apartamento eu estava tão cansada...que dormi mal. Estranhei o barulho da água passando pelos canos a cada vez que um vizinho utilizava o banheiro. Como os canos d´água da cozinha e do banheiro andam por fora das paredes para facilitar a manutenção o barulho da água é bastante forte. Acordei tresnoitada e toda doída.
Levei horas esperando a água ferver para fazer o café. Ao invés de um fogão convencional eu tenho uma plaque electrique de duas bocas fixada sobre o balcão da cozinha. Não é por nada não, mas fogão a gás é muito melhor.

Lições de Amir Klink

As primeiras semanas tem sido punk. Muito esforço físico aliado ao estranhamento causado por esse dia tão curto. Aqui, às cinco horas da tarde já é noite e eu não consigo mais ficar na rua, me dá uma urgência danada de voltar para casa. Nem no trabalho eu consigo ficar. Fim de semana então a coisa é mais difícil, pois está fazendo um frio danado, vai dando nervoso à medida que a temperatura abaixa e eu estou longe de casa, pois já constatei que o meu casaco não é dos mais apropriados ao frio daqui. Estou esperando os soldes de inverno para comprar um casacão de verdade.
Aqui tem o tal do verglas, uma camada de gelo bem fininha que recobre o asfalto e deixa tudo escorregadio e perigoso. Aos poucos eu vou afinal entendendo porque o europeu é tão neurótico com a previsão do tempo. Aqui todo mundo acompanha e sabe de cor como vai ser o clima nos próximos dias.
Quando entro de manhãzinha no campus do centro de pesquisa e vejo o laguinho congelado com as carpas laranja passando por baixo do gelo, lembro do Amir Klink que deixou para fotografar em outra oportunidade o mar cheio de cristais de gelo que ele viu no amanhecer do primeiro que passou na Antártida. Só que o fenômeno nunca mais se repetiu. Creio que eu também vou sair da França sem a foto do laguinho que eu amo tanto...

La laverie

Ontem fui lavar roupa, voltei tão cansada e com dor nas costas que cai na cama e dormi. Sinto quase mais saudades da minha faxineira do que de qualquer outra pessoa. Gostaria que ela tivesse um e-mail para poder ler isso.
Fui numa lave-leve. Entrei, comprei sabão em pó e amaciante e um senhor me ensinou a usar as máquinas de lavar e de secar. Todo mundo que entrava enchia as maquinas com sua roupa suja, largava suas sacolas por ali mesmo e ia embora deixando a maquina funcionando sozinha. Vi gente entrar com o cesto de roupa suja (aquele de plástico, que a gente põe na área de serviço). Aqui não e obrigatório usar o sabão vendido pela lavanderia como no Brasil. Todo mundo traz os produtos de casa, naquelas embalagens tamanho familia. Eles não se dão ao trabalho nem de botar em uns potes pequenininhos. Eu fui a única a comprar sabão e amaciante na lavanderia.
Acho que eles só lavam roupa uma vez por mês, pois cada um enchia duas ou três máquinas. Como os meus colegas usam a mesma roupa pelo menos três dias seguidos, essa teoria me parece bem provável. A vantagem é que as roupas duram mais tempo e as costas doem menos, pois eles não têm de andar carregando trouxa de roupa suja para todo lado.

Hugo Boss

Aproveitei os soldes de inverno, uma megaliquidação que atrai gente do mundo todo à França, e comprei um casacao Hugo Boss, tão chique que eu não tenho coragem de usar, fico só olhando...

Mal au Dos

Olha só que coincidência: eu tenho duas colegas de sala no centro de pesquisa. A mais velha (30 e poucos), filha de portugueses, faz aniversario no mesmo dia que eu! Vamos convidar nossos colegas de trabalho para beber uns vinhos na nossa sala. Como por aqui o pessoal bebe por qualquer coisa e diz que estao festejando a santa do dia, no dia 28 vamos festejar a santa Ybi.
Há uma semana eu estava entrevada, cheia de dor nas costas, o remédio para dor fazia pouco efeito, na dor. Meu estomago ficou em cacarecos. Hoje, sábado, 8:15h da manhã eu já estava na cinesioterapeuta. Ela me deixou de calcinha e de sutiã no meio de uma sala vazia e começou a descrever os desvios da minha coluna e a dizer onde deveria doer. Acertou. Depois, me deitou no chão, sobre um lençolzinho, pendurou meus calcanhares em um gancho caído do teto e ficou fazendo cócegas nos meus músculos das costas. Eu, que só acredito em coisas mais fortes, em massagem de enfermeira alemã, gorda, acostumada a sovar massa de pão, logo tive certeza de que aquilo não ia funcionar e resolvi ao menos relaxar e aproveitar o meu restinho de sono, de quem teve de acordar muito cedo. Ao final da sessão de uma hora ela me fez ficar de pé e perguntou TUDO BEM? Eu disse que sim, ela pegou o lençolzinho descartável, dobrou cuidadosamente, foi até a mesa dela e eu pensei cá com os meus botões QUE NOJEIRA, O PROXIMO PACIENTE VAI PENSAR QUE TÁ LIMPINHO! Aí ela abriu a gaveta, tirou um saco plástico, meteu o lençol dentro e escreveu ´Madame Ybi´. Ela estava guardando o lençol para eu usar na minha próxima sessão. Daí eu me dei conta que a minha dor de 10 dias tinha afinal passado. Vim pra casa caminhando, pensando que idéias pré-concebidas não estão com nada, me senti uma tola.
No caminho passei na feira. Comprei nata, alcachofras temperadas, salada de batata com atum e vim pra casa ler Maupassant. Afinal acabei dormindo toda a tarde, após uma semana de exaustão devida à dor e ao relaxante muscular.
Ainda agora me vi no espelho do banheiro, a cara lisa, relaxada. Vou carregar esse espelho comigo pro Brasil.
Jantei pão preto com nata e geléia de mirtilo, tudo diet. Meu livro ´Bel-ami´ está cada vez melhor, pena que Maupassant morreu doido. Vou rezar pela alma dele.
Amanhã pretendo ir conhecer o museu da Arquitetura, no Trocadero. Aproveitar que o tempo aqui está quentinho. Faz 10 graus. Voltar

Tags: um ano em paris ano sabático

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