Tintim, um gato muito especial
Na primeira vez em que o vi, ele estava sentado sob a sombra de um arbusto, apenas um raio de sol filtrava entre as folhas e iluminava em cheio seus olhos. Aquele momento tinha a beleza de uma revelação. O que eu ainda não sabia naquela ocasião, era que não me esqueceria jamais daquela cena.
Ao me aproximar, ele aguardou com calma a intimidade do toque que viria a seguir. Ao meu toque, se seguiu meu abraço. E então seguimos juntos para minha casa, de onde ele nunca mais teria saído, se eu não o tivesse abandonado por um ano inteiro. Mas disso, ainda não é hora de falar.
Naquela primeira noite, ele já se instalou em minha cama. Nos dias que se seguiram ainda tentei algumas vezes expulsá-lo, pois cama não é lugar de gato. Ao menos, isso era o que quase todo mundo me dizia. Por fim desisti de fazer com que ele respeitasse as leis alheias e logo evoluímos para uma relação cheia de peculiaridades, manias e rituais, como todo casal estável. Ciumento e possessivo, ele tinha um desprezo profundo pela maioria das pessoas que me cercavam. A única exceção era o meu namorado, a quem ele decidiu domesticar. Gato esperto!
Meus amigos mais próximos logo conheceram meu gato e aceitaram a veneração que eu dedicava a ele. Os demais, bem ... Quando eles viam o jeito que eu tratava o Tin, me perguntavam incrédulos “Mas por que tanta frescura? Ele é apenas um gato!” Sim, ele era um gato, mas eu sempre soube que era um gato muito especial. Ele parecia sempre entender tudo o que se passava na minha cabeça e no meu coração. Era um gato preto de rua, tal qual os gatos das bruxas, porém com um pelo muito longo e lustroso. “Um veludo!”, disse certa vez o lavador de tapetes que, encantado, não se cansava de admirar meu gato pela fresta da porta. Com comida abundante sempre a sua disposição, atingiu dimensões garfieldeanas ao se tornar adulto: ele pesava doze quilos.
Preocupada com o seu excesso de peso e com a dificuldade de fazer com que ele seguisse uma dieta de emagrecimento sem ser torturada pelos seus longos miados de protesto, decidi contratar uma veterinária que utilizava homeopatia e psicologia felina. Quando ela chegou na minha casa, vi que era pouco mais que uma menina. Muito jovem, vestida com um pulover cheio de fios puxados – pelo seu gato? - e com um jeito de ser impressionantemente simples, ela me dispensou poucas palavras de apresentação antes de se sentar no tapete da sala de estar e iniciar uma conversa em tom carinhoso e infantil com meu gato. Após uns poucos minutos ele já estava deitado de barriga para cima e ronronava de felicidade com os afagos que recebia. Eu acompanhei toda aquela cena com espanto e um ciúmes inconfessável, pois meu gato não era de dar intimidades a qualquer um.
Mais tarde, eu descobri que tinha sido enganada: a dita veterinária não era nem ao menos formada, era apenas a sobrinha do dono da clínica onde meu gato costumava ser atendido. Apesar disso, meu gato, que tinha sido diagnosticado por ela com transtorno obsessivo-compulsivo, passou a tomar Thuya e emagreceu. Quando soubemos que tínhamos sido enganados, eu e Tintim ficamos profundamente decepcionados, e dali em diante não houve mais tratamento que funcionasse tão bem.
Não sei se era o seu tamanho ou o seu peso avantajado que assustava a maior parte dos veterinários em que eu o levava, mas logo descobri que muitos deles não gostavam de atender gatos. Tinham medo. Nas primeiras vezes em que viajei e deixei ele hospedado nas clínicas, recebi de volta meu gato em um triste estado. As unhas arrancadas e o pelo imundo foram alguns dos sinais evidentes do sofrimento a que o pobre gato tinha sido exposto. Passei então a deixá-lo na casa de minha mãe, ou na minha própria casa, sob os cuidados eventuais daquele que agora era o meu ex-namorado e que já tinha sido propriamente adestrado pelo meu gato.
Num fim de semana ensolarado de novembro, quando planejávamos ir de carro para a casa de praia de um amigo no litoral de São Paulo, o dono da casa me fez a proposta mágica: “Por que você não leva o Tintin junto com a gente?”. Finalmente chegara o dia em que eu viajaria junto com meu gato! No dia marcado, embarcamos todos no carro. Tintim ia dentro de sua caixinha de transporte. Quando passamos em frente a Usina Nuclear de Angra, minha amiga que ia ao lado da caixinha onde estava o Tim reclamou que algo fedia lá dentro. Paramos o carro e descobrimos que ele havia feito cocô. Enquanto deixei o gato sob os cuidados desta amiga, fui ao portão da Usina e pedi para usar a torneira para lavar a caixa. Contudo, quando um carro com o escapamento aberto passou pelo nosso grupo, o gato se assustou e se libertou dos braços de minha amiga, indo se enfiar sob uma moita de plantas espinhosas no acostamento.
Quanto mais nos aproximávamos do Tintim, mais ele se enfurnava na moita, e assim ele acabou sumindo de vista. Passamos um bocado de tempo o chamando, e nada. Após uma hora de espera, fiquei encabulada por fazer o grupo perder um tempo precioso de um fim de semana tão curto e, já sem esperança de reencontrar meu gato novamente, concordei em seguirmos de carro para Ubatuba. Abri uma caixa de papelão que coloquei no chão ao lado da moita onde ele havia desaparecido, e esvaziei sobre ela um pacote inteiro de ração. Pelo menos ele não iria passar fome tão cedo!
Apesar de todas as palavras de consolo e a atenção dispensada pelos meus amigos, meu fim de semana foi lastimável. Eu não tirei meu gato da cabeça por um só momento. À noite, quando fechei os olhos para dormir, vi em close-up a grama, onde gafanhotos e outros insetos passeavam sob a luz do luar. Tudo isto iluminado por uma luz verde fosforescente. Esta cena eu via como que através dos olhos de meu gato, enquanto imaginava o terror que ele devia estar sentindo. Um gato criado em apartamento, que nunca ficava a mais de um metro de distância do meu colo, enfrentando só os perigos da selva à noite! Pobre Tintim!
No dia seguinte, meu nervosismo era tanto que partimos em direção ao Rio logo após o almoço. Minha intenção era chegar à Usina de Angra ainda durante o dia. Lá chegando, me pus a gritar. “Volta, Tintim. Onde você está? Vem com a mãe, meu amor!”. Meus amigos logo se juntaram a mim e gritamos em coro, chamando por ele por mais de meia-hora. A ração que eu havia deixado na estrada fora toda comida. Restava apenas o papelão aberto, manchado por uma nódoa de gordura. Ainda chamamos ele por mais algum tempo, mas afinal desistimos. Quando já estávamos voltando para o carro, entristecidos pelo desfecho desta história, eu ouvi um miado muito baixinho. Um miado que eu conhecia tão bem! “Tim, Tim, Tintim”, eu voltei a gritar, com energia redobrada. E ele afinal mostrou sua carinha em meio à vegetação do acostamento. Poucos minutos depois, seguíamos viagem todos juntos, o Tim sentado feito um lorde no meu colo. Ainda fizemos uma parada para lanchar no Mc Donald, onde ele aceitou a atenção e os afagos das crianças com muita tranquilidade. Agora o Tintim era um gato que havia demonstrado sua bravura a todos nas matas radioativas de Angra.
Quando ele já tinha quatorze anos, eu morei por um ano no exterior. Durante este tempo, ele ficou hospedado na casa de minha mãe, que também foi seduzida com sucesso. Ela, que nunca tinha gostado de animais, agora competia comigo nos quesitos carinho e atenção. Em pouco tempo de convivência, os dois desenvolveram suas próprias rotinas. Meu gato estava bem cuidado e feliz. Quando voltei um ano mais tarde, fui recebida com estardalhaço na porta da casa de minha mãe. Ele corria nervoso de um lado para o outro, se esfregava em minhas pernas e pedia carinho. Tinha sentido muitas saudades, me dizia ele. Emocionada, segurei Tintim firmemente em meu colo e fiz muitos afagos, até que enfim ele se acalmou.
Mas nem tudo eram rosas. No ano em que morei fora, ele adoeceu e, pouco tempo após o meu retorno, acabou morrendo. Ficamos inconsoláveis por um longo tempo, porém uma vez terminado o luto, acabamos cedendo novamente ao desejo de ter um gato em casa. Hoje, quando vez ou outra rememoramos as várias histórias de nossos bichos, invariavelmente uma de nós comenta “O Tim, ahhh... O Tim era um gato especial!”.
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