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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Tempo de festejar

Mal terminada a enchente de maio na capital gaúcha, aqui estamos outra vez, com as águas do Guaíba a apenas 30 cm abaixo da cota de inundação da cidade, rezando para que os ventos mudem de direção e escoem de uma vez por todas as águas deste lago que nos assombra. O mês de maio foi uma provação para a maioria de nós, uma reedição da pandemia. O que nos reserva o futuro próximo?

pé de maracujá

Durante a enchente, mesmo aqueles que não foram diretamente afetados pela enchente passaram praticamente um mês quase sem sair de casa, pois a circulação pela cidade ficou difícil. O prefeito pediu à população que abandonasse temporariamente suas casas na capital e fosse morar no litoral, mais isto não foi muito bem visto pela maioria das pessoas. Com a cabeça ocupada por tragédias pessoais de familiares e de desconhecidos, e os ouvidos atentos aos latidos e uivos intermináveis dos cães resgatados em abrigos, chegamos ao fim de maio com a alma abatida. Traumatizados de guerra.

Quase um mês após o fim da enchente, uma de minhas amigas fez um chamado ao grupo pelo what’s: “Vamos nos encontrar nesta quinta-feira?” Lemos a mensagem e pouco a pouco fomos saindo de nossas tocas, botando as cabecinhas de fora em busca de um raio de sol, do calor da amizade, e encaramos o convite como uma oportunidade de retornarmos à vida normal.

Chegado o dia marcado, atravessei a cidade para encontra-las no bar Agridoce. Ao chegar à rua Sarmento Leite, situada em pleno coração da Cidade Baixa, passei um longo tempo à procura de uma vaga para estacionar, espantada pelo movimento das ruas àquela hora: o que será que atraía tanta gente àquela região da cidade em um horário tradicionalmente morto?

A Sarmento Leite é uma rua antiga, com prédios baixos e portas de garagem estreitas, sem acionamento por controle remoto ou porteiros. Circulei por todas as ruas das proximidades, mas não encontrei nenhuma vaga livre. Finalmente me deparei em um canto de muro com uma plaquinha de madeira em cuja pintura já meio apagada se via escrito ‘estacionamento mensal e rotativo’. Fui logo entrando por uma passagem longa e estreita, ao final da qual havia uma cabine de madeira, de onde uma moça que me sorria. “Como assim, sorridente?”, me perguntei desconfiada, desacostumada a essas exibições de felicidade após um mês de tragédias.

 A moça da cabine me orientou a estacionar meu carro na vaga 22 e, circulando pela garagem à procura da dita vaga, descobri que o espaço era imenso. Nos fundos de um prédio de três andares com pintura descascada e telhas cobertas de musgo, vi uma série de vagas cobertas por um telhadinho Eternit de ao menos 50 anos de idade. Meu olhar se deteve no chão de cascalho fino, com lama da enchente ainda presente nos cantos do pátio e arbustos de tronco retorcido, dispersos aqui e acolá pelo espaço ensolarado. 

Fechei a porta do carro e continuei por ali, distraída, aproveitando o solzinho do fim de tarde que iluminava o meu rosto. De olhos fechados, imaginei o espaço atravessado por longos fios de arame que se cruzavam em todas as direções a 2,5 m do solo. Sobre a tessitura de arame, pés de maracujá carregados de frutos se esparramavam formando um espaço sombreado onde os clientes faziam uma pausa para bebericar e bater-papo, antes de prosseguirem com os seus afazeres. O ambiente marcado pela simplicidade e o improviso de uma cidade pequena, e as pessoas, pelo desejo de usufruírem a vida e a companhia dos amigos em uma tarde de sol. Como em Sarajevo.

Abri os olhos atônita pelo caminho que meus devaneios haviam seguido: Sarajevo? 

Estive nos Bálcãs em 2012, 17 anos após o término da guerra da Bósnia, mas as paredes dos prédios em Sarajevo permaneciam esburacadas por tiros de metralhadora, ali deixados para que o povo não se esquecesse da necessidade de evitar confrontos e de aproveitar a vida. Apesar do legado triste da guerra, me espantei com a energia boa do local. Em cada viela pipocava um recanto sombreado por plantas trepadeiras e guarda-sóis, onde o povo local e os turistas usufruíam do seu tempo livre. Sarajevo me fez relembrar que o aconchego e a paz de espírito podem renascer em meio à simplicidade, e que não é preciso eliminar completamente os sinais das tragédias passadas para voltar a crer no futuro.

Retomei minha caminhada ao encontro de minhas amigas a passos lentos, usufruindo dos últimos resquícios de prazer proporcionado pelo meu recanto imaginário. Logo vi o bar Agridoce, localizado do outro lado da rua. O bar está situado em uma casa antiga, recheada de charme e delícias, onde àquela hora uma verdadeira avalanche de mulheres animadas e falantes festejava com suas amigas o retorno à normalidad. 

Sim, o Guaíba ainda está logo ali, à espreita, mas já é tempo de voltar a festejar o prazer de viver.

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Tags: traumasenchentesarajevoguaiba

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