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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Sobre os ombros de um gigante

anao e sua esposa no picadeiro de um circo com uma menino sobre os ombros

 

- Olha só, Alya. Coitadinho! Vamos ver o que está acontecendo.

- Deixa ele, Didi, os pais podem não gostar. Ainda vão achar que a gente tá querendo fazer mal pra criança. Você tá cansado de saber que todo desconfia de quem é diferente.

- Deixar pra lá? Imagina, Alya! Ele tá chorando. Vem, a gente tem de fazer alguma coisa. É muito perigoso deixar uma criança assim sozinha, sem a supervisão de um adulto. Se fosse meu filho eu jamais deixaria isso acontecer, iria ficar agarrado na mão dele o tempo todo.

- Porque você está chorando neste lindo dia de sol, hem meu rapazinho?

O garoto, funga, esfrega as mãos pelo rosto para enxergar melhor e fica ali, sem dizer palavra, o olhar vagando pelo homem agachado a sua frente.

- Viu, você o assustou, Didi! Vamos embora antes que ele comece a gritar e a gente se meta em confusão.

- Que é isso, mulher? Vai abandonar uma criança chorando?

O garoto começa a sorrir tímido, enfia o dedo no nariz, e finalmente pergunta ao homem:

- Você também é criança?

- Garoto esperto! Essa daqui levou um ano inteirinho para descobrir isso, e agora vive me repetindo 'Você é um crianção! Esqueceu de crescer! Não fique pensando que eu sou sua mãe!' Antes ela passava os dias elogiando minha beleza, meus músculos e o brilho dos meus cachos - ele comenta enquanto rodopia no solo, contrai os bíceps e passa os dedos entre os próprios cabelos. Ayla, finge estar chocada por essa exibição de vaidade de seu companheiro e lhe dá um tapinha no braço.

Os passantes olham curiosos o casal de artistas de circo trocando implicâncias com gestos teatrais. Enquanto isso, o garoto assiste mudo à cena, sem nada entender.  Após mais alguns segundos de exame detalhado, ele acrescenta sério:

- Você não é criança, não. Tem cara de velho!

- Que é isso, garoto, você não tem direito de me ofender. Saiba que eu faço o maior sucesso com as mulheres, elas se viram na rua para me olhar quando eu passo.

-Ah Ah Ah! Sem noção! Não dá bola pra ele, garoto. O que falta em estatura, sobra em presunção.

Didi, perde momentaneamente o bom humor. Na tentativa de disfarçar o ego ferido, ele ajeita as mangas da jaqueta de couro e espana o pó das calças de veludo cotelê.

- Bom, nós estamos aqui para te ajudar a resolver o teu problema...como é mesmo teu nome, meu querubim?

- Gabriel

- Até o nome é de anjo, Alya. Não podia ser mais perfeito. Teus pais estavam inspirados quando te batizaram.

A menção aos seus pais, faz com que Gabriel volte a ficar triste. As lágrimas voltam a escorrer pelo rosto e os soluços reaparecem, cada vez mais frequentes.

- Xo, xo, xo. Não fica triste. Você se perdeu dos seus pais, não foi?

Gabriel faz sinal afirmativo, abrindo o berreiro. Os passantes olham a cena curiosos. Alguns se afastam, mal escondendo a repulsa. Alya e Didi, escutam uma mulher, alterada, esbravejar “Pedófilos...aberração...Polícia!”, enquanto seu marido a arrasta para longe.

- Vamos, Didi. Deixa esta criança. Está quase na hora do nosso show começar.

Didi ignora os argumentos de Alya. Ele agora só consegue pensar em ajudar a encontrar os pais desta criança de cachos dourados e olhar assustado à sua frente.

- Vem, garoto. Vamos procurar teus pais. Nós vamos fazer o seguinte: eu vou te colocar sobre os meus ombros para você ver se consegue achar seus pais caminhando no meio desta multidão. Combinado?

 Diante da perspectiva de uma aventura sem igual, Gabriel se acalma e estende os braços para Didi.

- Homem, você não tem juízo? Vive reclamando de dor nos braços e pernas. Como é que você vai carregar esta criança nas costas?

Didi se agacha ao lado de um degrau e pede à Alya que ajude o menino a montar na garupa.

- Upa!, diz ele durante esta operação complicada. Agora se agarra forte ao meu pescoço para não cair.

Gabriel admira o mundo do alto, encantado. Seu pai nunca quis levá-lo nos ombros, sempre dizia que era perigoso. Que só no dia que ele fizesse seis anos é que ele poderia subir na cacunda. 

- Tá tudo bem aí em cima? Sua cabeça está tocando as nuvens?

Gabriel, se ressalta, mexendo a cabeça de um lado para o outro em busca das nuvens, enquanto Alya e Didi caem na gargalhada. 

- Ohooo, quietinho aí em cima, senão nós dois vamos acabar caindo.

Didi segura as pernas do garoto com a mão esquerda, enquanto remexe seu bolso com a mão livre.

- Veja só que eu encontrei aqui, um pirulito!

Com o pirulito espetado na boca, e o olhar sonhador vagando entre as jaulas dos dos leões e o palhaço que anda em meio ao público com suas pernas de pau, Gabriel segura o rosto de Didi com suas mãozinhas miúdas. O sol das quatro da tarde, em sua trajetória descendente, aquece as costas dos três, criando uma sensação de aconchego. Quem os vê passar assim tranquilos poderia pensar que são mai uma das tantas famílias que aproveitou este domingo de bom tempo para ir ao circo.

Ayla contempla seu homem, que com um sorriso orgulhoso no rosto, estende a mão para ela. Há quanto tempo não se sentiam assim, unidos e felizes...

- Gabriel, meu filho. Deus seja louvado! Achei que nunca mais fosse te encontrar. Onde é que você foi se meter? E quem é esse anão?

O sorriso afixado no rosto de Didi se apaga feito chama de vela. Relutante em deixar partir seu querubim, ele deixa suas mãos escorregarem pelas perninhas de Gabriel, enquanto o pai do menino o tira de seus ombros.

Ayla assiste à cena sem soltar um pio, com o olhar fixo em Didi, cujos olhos não largam do rosto de Gabriel. Quando, afinal, a criança e seus pais partem, após proferirem um ‘Muito Obrigada’ quase inaudível, Ayla, puxa Didi pela mão em direção ao trailer onde eles moram, e sugere com voz rouca, ao pé do seu ouvido:

- Vamos fazer neném, bem?

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Tags: artistas de circoanõescriança perdidapreconceito

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