Revisitando a obra de Castañeda 40 anos mais tarde
Estou relendo “A erva do diabo – os ensinamentos de Dom Juan”, de Carlos Castañeda, livro que havia lido e amado a cerca de 40 anos atrás. Não costumo ler duas vezes o mesmo livro, nem assistir novamente um filme que já vi e gostei, pois sei que a chance de me decepcionar é grande. Quando adoro uma obra, isto frequentemente é sinal de que ela reflete o momento que estou vivendo. Embora persista em mim o desejo de acreditar nas experiências psicodélicas relatadas por Castañeda em seu livro, o meu momento hoje é outro, e o estilo do livro deixa a desejar. Dessa vez, me senti meio decepcionada com o livro, pois acho que o assunto merecia uma edição mais cuidadosa.
Após ter lido a primeira metade do livro e ter chegado à conclusão de que o personagem principal, o xamã Don Juan, é descrito de modo superficial, fui consultar os comentários sobre o livro e o autor na internet. Fiquei abismada com o que descobri. Biógrafos que estudaram a vida do escritor e a sua ex-mulher Margaret Runyan garantem que a obra é pura ficção e apresenta sérias incoerências com a biografia de Castañeda. Apesar disso, seu livro revolucionou os estudos antropológicos e o autor acabou recebendo um título de doutor pelos relatos que compõem os seus três primeiros livros, embora nunca os tenha comprovado com fotos, anotações de campo ou gravações.
Quando Castañeda se tornou um escritor famoso, ele declarou ao jornalista da revista Time ter nascido no seio de uma família nobre em São Paulo no dia de Natal, contudo sabe-se hoje que ele era peruano. As mentiras e fatos obscuros de seu livro e de sua vida não impediram que ele se tornasse milionário, amigo de personalidades influentes de sua época e fonte de inspiração para vários personagens do cinema e literatura. Escreveu ao todo 13 livros que venderam cerca de 27 milhões de exemplares.
A estranha ironia do momento atual de minha vida é que estou lendo o livro “A erva do diabo” concomitantemente ao planejamento de minhas férias. Enquanto sofro com o preço das passagens aéreas e com a dificuldade de conseguir lugar nos voos que me convém, leio sobre as experiências alucinógenas de Castañeda com o peiote, a datura e cogumelos, e invejo seus vôos noturnos solitários pelo deserto do México. Seria tão bom poder voar com as minhas próprias asas!
Assim como se passou comigo há 40 anos atrás, várias pessoas se tomaram de amores pela obra de Castañeda. Um dos personagens mais famosos do cinema, o Mestre Yoda, de Star Wars, foi inspirado no xamã Don Juan, conforme confessou George Lucas. Dizem ainda que Federico Fellini abandonou uma filmagem para viajar com Castaneda pelos EUA e México, e que Castañeda era muito amigo da Rainha Sofia, da família presidencial López Portillo do México, e do ilusionista Uri Geller. Além destes admiradores famosos, uma legião de seguidores invadiu o deserto de Sonora , no México, em busca de experiências psicodélicas semelhantes às de Castañeda à época do seu sucesso editorial.
Contudo hoje, 25 anos a pós a sua morte, se sabe que nem tudo na sua vida foram flores. Após a morte do escritor, a autora Amy Wallace publicou em seu livro um relato sobre os 20 anos em que compartilhou a vida com Castañeda como seguidora do culto por ele criado. Seu relato é pleno de rituais bizarros e histórias de abuso sexual e moral praticado por Castañeda em sua fase madura, quando se revelou um líder autoritário contra suas seguidoras mulheres. Imediatamente após a morte dele, aos 75 anos, cinco de suas seguidoras mais próximas se suicidaram. A história é controversa e picante, expondo seus livros a sérios questionamentos e contribuindo para que o amor cego que dedicamos a sua obra na juventude seja mais um destes relacionamentos da mocidade em que fomos traídos na nossa ingenuidade.
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