Recordações de um verão de sonho de minha infância
“Olha o Puuuxa-puuuxa!”, grita ao longe um garoto caiçara, que vende aos turistas de verão as guloseimas feita pela sua mãe. É três da tarde e todos fazemos a sesta após o almoço. Nós nos levantamos da mesa do almoço ainda há pouco, com os corpos ainda quentes e a pele ardendo, cheios de sol. Os apetrechos de plástico para brincar na areia, os biquinis molhados e os planondas grudados de maresia foram todos abandonados em um canto ao retornar da praia, esperando que alguém apareça para lavá-los. Agora é hora de nós juntarmos forças para as aventuras da tarde.
Enquanto meus primos dormem, eu retorno à leitura do último fascículo da revista Seleções do Readers Digest, que abandonei lido pela metade no final do último veraneio. A proprietária do apartamento que alugamos na praia todo ano tem uma coleção desta revista desde que ela foi lançada no Brasil. Olho para a estante com ar sonhador, e me ponho a classificar os fascículos em ordem numérica, fascinada por este verdadeiro achado arqueológico de verão, repleto de contos, artigos sobre as últimas descobertas científicas e cultura de almanaque. Tudo isso ilustrado com desenhos coloridos que enchem os olhos.
Quando o garoto que vende puxa-puxa enfim chega ao nosso prédio e repete o refrão de sempre, começam a surgir crianças vindas de todos os lados: é declarado o fim da sesta. Recuperamos então nossas bicicletas Caloi abandonadas no pátio do prédio e saímos, com a cara melada de puxa-puxa e os joelhos escalavrados, a desbravar os encantos da praia. Embora eu mal tenha feito doze anos e seja a mais velha de nós três, não há razão para se preocuparem conosco. Eu e meus primos aproveitamos a liberdade recém-conquistada para desbravar este litoral tranquilo.
É meado de dezembro e a maior parte das casas ainda não abriu para a temporada de verão. Os caseiros fazem os últimos reparos antes que os proprietários comecem a chegar, logo após o Reveillon. Até lá a praia será nossa, dos pescadores e de um ou outro veranista adiantado, que vem compartilhar conosco este recanto perdido do paraíso. Torcemos para que o dia 15 de dezembro chegue logo e o cinema abra as suas portas. Não há nada melhor do que assistir a filmes de suspense naquele cinema velho, todo feito de tábuas de madeira que rangem sob nossos passos. São inesquecíveis os momentos em que o medo que nos imobiliza nas cenas de terror, quando o público bate os pés no chão de tábuas em uníssono, se transmuta em gritos histéricos e gargalhada.
Um dia vamos explorar o sambaqui que fica no cômoro de areia, ali onde a rua principal desemboca na praia. Quem sabe conseguimos encontrar mais uma ponta de flecha para a nossa coleção? Nos instalamos no cocuruto do cômoro, sentados de pernas abertas sobre a vegetação rasteira e, com a pazinha em punho, iniciamos a procura por relíquias. Somos observados de perto por pequenos caranguejos quase incolores, que se enterram na areia ao menor sinal de agitação. Esporadicamente, a nossa atenção é capturada pela passagem do fotógrafo mambembe, dos pescadores ou das empregadas domésticas, a quem pertence a areia da praia após o almoço. Vez ou outra um casal mais afoito se forma e se entrega aos abraços e beijos ali mesmo, sob o nosso olhar curioso.
Mais tarde, com duas ou três pedras lascadas enfiadas nos bolsos, tomamos o caminho de casa. É hora de ir dar sinal de vida à minha tia. Logo depois, pegamos as bicicletas outra vez e vamos passear lá para as bandas de Capão da Canoa, ver as casas que ainda estão meio soterradas pelas dunas de areia, movidas pelos fortes ventos do inverno gaúcho. Antes mesmo de entrar em casa, encontramos minha tia sentada em um banquinho no corredor do prédio, com um balde de plástico entre as pernas, lavando as tatuíras que catamos na beira da praia mais cedo.
Numa sexta-feira, ao voltarmos do nosso passeio por Capão, encontramos meu tio que acabou de chegar de Porto Alegre e vem passar os fins de semana conosco. Ele está de pé, encostado ao balcão da cozinha, picando cebolas, tomates e cheiro-verde. Enquanto ele pica os ingredientes para preparar um caldo para o jantar, nós nos juntamos ao seu redor para saber as novidades da semana. Ele aponta então duas caixas enormes lotadas de tomates até o topo, diz que a plantação que hoje ocupa quase todo o jardim dos fundos da casa agora atinge a altura da cintura. Mesmo após distribuir tomates aos vizinhos, ainda sobraram muitos tomates maduros no pé. “Tem de transformar tudo em molho antes que comece a estragar”, diz ele para sua mulher. Nós três reparamos que minha tia observa aborrecida os tomates, antes de se abaixar para pegar o balde, onde as tatuíras aguardam a hora de serem jogadas vivas no caldo escaldante.
Sábado amanhece ensolarado e, como nos outros dias, logo após o café da manhã, vamos todos à praia. Cada um de nós vai carregando uma infinidade de apetrechos para a beira do mar. Logo após montarmos o guarda-sol na areia, besuntarmos o rosto com pasta d’água e o corpo com uma mistura de óleo Johnson’s e semente de urucum, meu tio pergunta quem quer aproveitar a chance de nadar com ele até a rebentação. Desta vez sou eu quem vai agarrada ao seu pescoço, enquanto ele avança mar adentro segurado a rede em um braço enquanto dá braçadas com o outro. Após ele esticar a rede paralela à praia, nós aguardamos um tempo batendo os pés no mar profundo, enquanto sentimos as ondas que passam tranquilas por nós, antes de irem rebentar em mar raso. Naquele dia voltamos para casa com um balde lotado de tainhas e papa-terras.
Enquanto nós três disputamos em frente à porta do banheiro para definir quem será o primeiro à tomar banho, e meu tio lava a rede de pescar e as estende ao sol para secar, minha tia desce ao pátio do prédio para lavar nossos brinquedos, os biquinis, as roupa usadas no dia anterior, e sobe novamente para preparar o almoço. Neste dia, após uma sesta curta, pegamos o carro e vamos passear nas lojinhas de Capão da Canoa, comprar artigos de palha e de madeira entalhada. Mais tarde, já de volta ao nosso apartamento, enquanto meu tio encarapitado lá no alto do telhado gira a antena de televisão de um lado para o outro, nós gritamos cada vez que na TV portátil o chuvisco dá lugar a uma imagem P&B de baixa qualidade. Tanto esforço para sintonizar a TV se justifica: é dia de GRENAL. Pela porta aberta da sala, vemos minha tia sentada em seu banquinho no corredor do prédio, nos espiando curiosa, enquanto aperta as barrigas dos peixes uma a uma, para limpar suas tripas. Ao final da janta, enquanto lavamos e secamos a louça, meus primos e eu tagarelamos: infelizmente o Grêmio venceu o jogo, e ainda temos de preparar as malas para voltar para P. Alegre antes de ir para a cama, mas o peixe frito estava delicioso! Minha tia, com o ar absorto e um sorriso nos lábios, comenta distraída “Amanhã começam minhas férias”. Nisto, eu, meus primos e meu tio nos viramos surpresos para ela e em seguida caímos na gargalhada. “Mãe, tu te confundiste! Amanhã as nossas férias terminam”, diz minha prima entre risos. “É mesmo”, responde minha tia, com um sorriso enigmático.
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