Que cara de riso é essa?
Você sabe o que faziam os empregados do SESC que trabalhavam na capital mineira durante os finais de semana nos anos 1960? Eles viajavam para as cidades próximas à capital com seus colegas de trabalho. Consideradas programas-família, de baixo custo e com excelentes hotéis, as excursões do SESC eram famosas, fazendo sucesso entre os trabalhadores de classe média. Foi numa destas excursões para Poços de Caldas que Aninha viajou pela primeira vez em sua vida, na companhia de sua mãe, a Dra. Nair, uma empregada do SESC. E é nesta viagem que começa a nossa pequena história.
Antes de se juntarem ao grupo naquela manhã de sábado, Aninha tinha sido devidamente catequisada por sua mãe. “Por favor não me envergonhe na frente dos meus colegas. Porte-se bem e não faça malcriação. Se falarem contigo, responde em alto e bom tom. Nada de ficar se escondendo atrás da minha saia e resmungando como um bicho do mato. Presta atenção especialmente ao Doutor Gregório, que é o chefe da mamãe. Ele é um senhor muito sério, e se você fizer algo de errado, ele pode me demitir”. “Tá bom, mãe. Tá booom”, respondeu Aninha pela milésima vez.” Prestenção, filha, lá vem ele.”
“Doutora, que gracinha! Esta é a sua filha, a Nairzinha? Que idade você tem, querida?”. Aninha, aborrecida com aquela mania dos adultos de chamarem ela pelo diminuitivo do nome de sua mãe, olhou com seriedade para o senhor que, de pé à sua frente, aguardava por uma resposta. Meio que de má vontade, mostrou seis dedinhos, esperando que aquele sofrimento passasse rápido.
- Nair, que bom que você veio! Aninha, como você está linda com esta minissaia! – quem interrompia aquela saia-justa era Valdete, a radiologista, a primeira que conseguira arrancar um sorriso de Aninha naquele dia. Finalmente alguém havia reparado na roupa que Aninha estava vestindo, uma camiseta estampada com o Topo Gigio e uma minissaia vermelha que tinham sido um caso de amor à primeira vista! Radiante de orgulho, Aninha mostrou todos os dentes à tia Valdete. Foi neste momento que Beth chegou para cumprimentar a Dra. Nair. “Tudo bem, doutora?”, perguntou Beth, e, num movimento contínuo, se virou para investigar aquele pequeno ser insignificante que irradiava sobre ela o brilho de um sorriso destinado à Valdete, sua concorrente.
Valdete e Beth eram ambas solteiras e emancipadas. E, à despeito das convenções vigentes na sociedade mineira naqueles distantes anos da década de 1960, gozavam de uma relativa liberdade sexual. Porém, Valdete, com seu sorriso aberto e seus modos espontâneos, fazia maior sucesso com o sexo oposto. Eternamente aborrecida com as demais integrantes do chamado sexo frágil, todas elas concorrentes em potencial, Beth olhou para aquele micuim de minissaia e destilou seu veneno: “Por que é que você está sempre sorrindo garota? Bateu com a cabeça?”. Naquele dia, a Dra. Nair examinaria repetidamente sua filha em busca de sinais de que havia algo errado com ela, mas Aninha parecia ser a mesma de sempre.
Vinte e um anos mais tarde, durante o exame admissional, Ana viria escutar novamente esta mesma questão durante a entrevista com a psicóloga. Após responder todas as perguntas de praxe sobre sua infância e as razões pelas quais ela estava se candidatando ao trabalho, a psicóloga diligentemente fechou a pasta com suas anotações sobre a candidata, retirou os óculos e, com um olhar enigmático, perguntou a Ana se ela já havia batido com a cabeça. Ana titubeou nervosa, sem saber o que dizer, relembrando aquele dia a mais de 20 anos atrás em que sua mãe se pôs a examiná-la atentamente quando a mesma pergunta foi feita pela sua colega Beth. “Meu Deus, será que a minha queda deixou algum sintoma?”, Ana pensou enquanto procurava desesperadamente uma resposta adequada. “Não, claro que não”, ela finalmente respondeu, enquanto se remexia na poltrona, tentando relaxar seus ombros retesados.
Naquela mesma noite, Ana foi a um boteco da Savassi encontrar seus colegas de faculdade que estavam passando pelo mesmo processo admissional para trabalhar na USIMINAS. Enquanto eles olhavam o cardápio e escolhiam os petiscos para acompanhar a cerveja, Ana puxou Luiz Carlos pelo braço e perguntou baixinho ao pé do seu ouvido “Posso te fazer uma perguntinha sobre a tua entrevista de hoje com a psicóloga?”. Luiz Carlos, que era o seu melhor amigo no curso de Engenharia Metalúrgica, respondeu “Claro, Ana, você pode tudo”. ”A psicóloga te fez alguma pergunta esquisita, Caco?”. “Ela me perguntou se eu já tinha tido relações homossexuais”, respondeu Luiz Carlos rindo um riso amarelo. “Ahhhh”, Ana respondeu com um suspiro de alívio. O Caco, que era o maior garanhão da faculdade, estava sempre dando em cima de todas as garotas. Uma pergunta idiota dessas só podia ser sinal de que os psicólogos costumavam fazer perguntas sobre algum assunto tabu apenas para ver como o entrevistado reagia.
Contudo nas semanas que se seguiram ao admissional, Ana observou que Caco parecia desanimado. Nenhuma das garotas da lista das 10+ da faculdade provocava qualquer reação nele quando ele as encontrava na rua. Ana, também, já não era mais a mesma. Embora ela tivesse sido admitida no emprego, aquela entrevista com a psicóloga havia deixado ela com uma pulga atrás da orelha. De novo ela pensava em Beth, aquela desgraçada. “Para que soltar seus demônios em cima de uma pobre criança, sua bruxa velha?”, ela falou exaltada, chamando a atenção de seus novos colegas de trabalho, que aguardavam pacientes na fila do bandejão à hora do almoço. Quando viu que todas as pessoas na fila olhavam para ela espantadas, Ana se virou sem graça pedindo desculpas. Lá no final da fila alguém fez um comentário maldoso: “Ihh, essa daí deve ter batido com a cabeça na borda da banheira quando era bebê”, e imediatamente os demais caíram na risada.
Sim, Ana realmente havia batido com a cabeça quando era pequena. Ela levara um tombo na calçada e a batida fora tão forte que provocou uma concussão seguida de crises epilépticas. O pediatra diagnosticou disritmia e recomendou que ela tomasse Comital. E assim foi feito pelos próximos 9 anos, até que, um certo dia, seu pediatra faleceu. Foi então que sua mãe resolveu levá-la a um especialista. Após examinar todos os eletroencefalogramas de sua infância, ele disse que Aninha nunca tivera nenhum problema neurológico, mas que agora deveria passar dois anos reduzindo a dose da medicação até suspendê-la por completo. A mãe, contudo, nunca acreditou muito no especialista, afinal Aninha era sua filha e, se alguém tinha dito que havia algo de errado com ela, este alguém devia ter razão. Ana cresceu sendo tratada como se fosse doentinha. “Coitadinha”, comentava sua mãe sempre que alguém fazia críticas a ela. Ninguém se preocupou em ensinar Ana a se defender de comentários maldosos, e ela acabou se tornando a vítima perfeita.
Os anos se passaram e Ana estava agora casada com Nestor, funcionário público de Contagem que ela havia conhecido no ônibus no trajeto de volta para casa do trabalho. Naquela noite, deitada em sua cama, Ana lia com atenção o artigo “Como apimentar sua relação”, publicado no último fascículo da revista Marie Claire. Lá pelas tantas, seu marido se pôs a cafungar no seu pescoço, enquanto sua mão esquerda invadia desajeitada a camiseta que ela usava para dormir, recebida como brinde nas últimas eleições presidenciais. “Ai, Nestor, deixa disso. Hoje eu não tô a fim. Tô louca de dor de cabeça...”. Nestor, ferido no seu orgulho de macho por mais esta recusa em transar, ainda pensou em forçar um pouco a situação. Mas estes eram tempos de ‘Não é não’... Ele então resolveu virar de lado e dormir. Porém no último segundo antes de apagar a sua luz de cabeceira, Nestor não se conteve e secretou uma pérola de maldade: “Ana, você deveria consultar um neurologista. Tanta dor de cabeça assim não pode ser normal!”.
Naquele momento, o peito de Ana se contraiu em um espasmo. Era o nascer de um riso, sem beleza, nem compasso. Um riso que brotava irrefreável. "Quanto tempo perdido acreditando em besteiras", ela disse afinal, enxugando as lágrimas penduradas nos cantos dos olhos e respirando fundo, na tentativa de recuperar o controle perdido. Nestor, sem entender o que se passava com sua mulher, repetia baixinho "Você tá louca, você tá louca, mulher!"
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