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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Quando a chama se apaga

 encontro casual

Não conhecia meus vizinhos de cima, nunca os tinha visto. Mas conhecia intimamente os seus hábitos. Após tantos anos morando no andar de baixo, já identificava os sinais de que uma nova crise na relação se aproximava: inicialmente o andar da mulher se tornava mais pesado; seu sono, mais curto; e a limpeza da casa passava a se iniciar antes do raiar do dia. Escutava então os móveis sendo arrastados para cá e para lá, sem nunca encontrarem seu local ideal. As tarefas do dia a dia pareciam se tornar para ela um estorvo insuportável, sendo feitas mecanicamente, sem atenção. Mil objetos caíam de suas mãos, e o impacto deles no chão me causava sobressaltos. Naqueles períodos, a crise do casal de cima se tornava palpável e sinistra como uma bolha de sabão gigante vagando pelo ar, cujo estouro é inevitável. Até que um dia, durante a madrugada, eu finalmente escutava “cala a boca senão eu te mato!”. Após cada crise, se seguia um tempo de calmaria.

 Mas naquela terça-feira as coisas foram diferentes. Deitado na cama ao meu lado, meu marido se revirava insone, angustiado devido à disputa no apartamento vizinho. “Estranho, pois os nossos problemas nunca parecem afetar o sono dele.”, pensei enquanto me mantinha imóvel na cama para que ele não percebesse que eu estava acordada. Mas além do espanto, eu sentia que a sua crise de insônia despertava em mim uma onda de admiração. Eu finalmente era capaz de identificar nele um vestígio de solidariedade por um ser humano que sofre. Logo ele, sempre tão contido!

 Naquela noite, como em todas as noites em que o casal brigava, eu acompanhava tensa e muda o bate-boca entre os dois. Ao final da briga, a vizinha foi calada pelo seu marido, submetida ao sexo como a um castigo. Porém naquela vez, quando o ritmo frenético das molas da cama do casal iniciou, meu marido desistiu de tentar conciliar o sono, e se levantou para preparar o café da manhã. Ao primeiro raio de luz, ele saiu de casa silenciosamente, como um bandido em fuga. Quando ouvi a porta sendo fechada com cuidado, enfiei o rosto no travesseiro úmido, murmurando entredentes, “Há dias em que eu gostaria que nós fôssemos como o casal do andar de cima!”. “Como assim?”, me perguntei, erguendo de súbito meu rosto, ao me dar conta do absurdo que eu havia dito. Após alguns instantes analisando a situação, me dei conta de que, embora a vida deles parecesse infernal, pelo menos ela tinha fases de altos e de baixos. Enquanto a nossa vida era como uma planície estéril...

 Nós dois pertencemos àquele grupo de almas domesticadas, incapazes de dar vazão aos próprios sentimentos. Em situações de conflito, permanecemos silenciosos e nos afastamos um do outro com elegância. Há anos dançamos este Pas de Deux, cada vez mais distantes. Quase não nos vemos mais. Quando ele chega em casa, já estou dormindo. Quando eu reclamo, ele não escuta. Quando ele se exalta, eu viro as costas, indiferente. Com o tempo, acabamos entrando para o seleto grupo dos casais que nunca brigam. “Que inveja!”, dizem os amigos mais próximos, mas eles nada sabem: no nosso caso, a ausência de brigas não é sinal de afinidade entre nós, mas sim de covardia. Medo de encarar de frente o fracasso da nossa relação.

 Na manhã seguinte à disputa do casal, levantei-me da cama com um humor sombrio. Essas brigas do casal do andar de cima sempre provocam em mim uma sensação de ressaca emocional. Em dias como estes, eu geralmente acalmo os nervos passando à ferro. Quanto maior a pilha de roupas para passar, maior o efeito sedativo. O movimento de vai-e-vem do ferro de passar, o barulho do vapor saindo sob pressão, o calor que emana da roupa: tudo isso em conjunto provoca em mim o efeito de uma sessão de meditação. Naquela manhã, enquanto guardava no armário as nossas roupas recém passadas, me dei conta de que as roupas prediletas de meu marido haviam sumido. Todas. De uma só vez. Restavam apenas uns pijamas velhos, umas calças jeans fora de moda e a camisa social que eu havia dado a ele no último Natal e que ele nunca havia usado. Achei aquilo estranho, pois ele quase nunca se dá ao trabalho de levar as próprias roupas à lavanderia.

 Na hora do almoço, ele reapareceu, pontual como sempre. Vinha de bom humor. Disse que a minha comida estava deliciosa, e que eu sou uma excelente dona de casa. “Que bicho será que mordeu ele?”, fiquei ali pensando, de boca aberta, enquanto ele me fazia elogios. Pouco antes de voltar ao trabalho, ele me avisou que teria de fazer uma viagem para São Paulo. Viagem à trabalho, de dois ou três dias de duração. Não sabia bem ao certo. Saiu levando consigo uma malinha pequena. Ao passar pela porta, me deu um beijo na testa e eu, comovida por esse gesto afetuoso tão raro, decidi aguardar a chegada do elevador para vê-lo partir. Sentia renascer em mim a esperança de uma reaproximação. Afinal sempre vale à pena lutar para manter acesa a chama de um casamento de tantos anos, não é mesmo? 

 O elevador demorou um pouco mais do que o normal. Ele subiu até o último andar do prédio, e, em seguida, deu uma parada breve no andar acima do nosso para que o vizinho pudesse embarcar. Ouvimos as rodas de uma mala que se prendiam no trilho da porta do elevador e atrapalhavam o seu fechamento. Quando a porta do elevador se abriu no nosso andar, vimos uma bela mulher loura, cujos olhos vagaram entre mim e meu marido antes que ela se decidisse a cumprimentá-lo. “Tudo bem, João Cláudio?”, ela falou. Ele balbuciou uma resposta inaudível e entrou no elevador de cabeça baixa. “Ai, como esse meu marido é tímido! Devia ao menos cumprimentar nossa vizinha com boa educação!”, pensei enquanto admirava a cena com um olhar enternecido. Foi então que me dei conta de que havia algo estranho. “Quem é ela?”, pensei. Quando ele se deu conta de que eu impedia o fechamento da porta do elevador, aguardando por um esclarecimento, meu marido me olhou acuado e respondeu “Esta é Sueli, nossa vizinha do andar de cima”. “Ahhh!”, eu respondi, liberando as portas do elevador. Enquanto as portas se fechavam, diriji um breve sorriso cúmplice para esta alma sofredora do andar de cima. Questão de sororidade, se você me entende. 

 Três dias mais tarde, enquanto limpava com afinco os vidros da sala de estar, preparando o apartamento para o retorno de meu marido, que tardava a voltar de viagem, escutei uma gritaria vinda lá do andar térreo. Espichei a cabeça sobre o parapeito da janela e vi um grupo de vizinhos que se agitava em torno de uma pessoa caída no chão. Enquanto uns gritavam por ajuda, outros faziam massagem cardíaca. Larguei tudo o que estava fazendo e segui apressada para o pátio do edifício. “O que aconteceu?”, perguntei a uma vizinha que conheço de longa data, enquanto acompanhava o empenho da síndica, que é enfermeira da SAMU, na reanimação de um homem de meia-idade extremamente machucado. “Ele pulou lá do décimo andar”, ela me respondeu. “Do décimo?”, respondi com a voz aguda, meu interesse subitamente aumentado. “Sim. Ele é o Marcos, teu vizinho de cima. Deve ter sido um ato de desespero. Parece que ele foi abandonado pela mulher, que fugiu com outro cara.”. Saí dali correndo aos prantos. Os demais me olhavam sem nada entender.

 Ao entrar em casa tive um ataque. “João Cláudio, seu covarde filho da puta!”, gritei a plenos pulmões. Abri a janela do quarto e lancei através dela todos as roupas e sapatos dele que ainda restavam no armário. Seguiram suas coleções de latinhas de cerveja, as fotos do casamento, seus mil apetrechos para fazer a barba, perfumes e as roupas de inverno embaladas com bolinhas de naftalina, esquecidas na prateleira de cima do guarda-roupas. “Que absurdo, podia ao menos dar estas roupas para os desabrigados da enchente”, gritou uma vizinha do condomínio em frente, antes de fechar a janela e voltar novamente a sua atenção para a série coreana que estava assistindo.

 

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