Pode ser vapt-vupt, São Pedro?
Conversas com motorista de taxi não são apenas sobre política e o tempo. Esta que ocorreu no dia de Finados, também rendeu divagações sobre o destino do corpo e da alma após a morte.
Um bafo mortal se estende sobre Porto Alegre anunciando o início antecipado do verão. Hoje, como em todas as manhãs de sábado, eu e minhas amigas fomos ver um filme no Clube de Cinema. Na saída, ainda com nossas mentes divagando sobre a história do filme, seguimos caminho movidas puramente pela inércia, atravessamos a Feira do Livro e acabamos fazendo um desvio forçado em direção à fila do taxi. Impossível continuar caminhando com este calorão! O melhor seria seguirmos direto cada uma para a sua casa, e dali para o chuveiro.
Seguia pela rua pensando que a escolha do filme exibido no Clube de Cinema não poderia ter sido mais perfeita para o dia de hoje, Dia de Finados. “Sidonie au Japon” é um filme sobre o processo de luto de uma escritora francesa que viaja ao Japão no intuito de aplacar o sofrimento causado pela viuvez recente e pela consequente crise em sua produção literária. Lá ela encontra pela primeira vez o fantasma de seu marido, que a ajuda a superar o luto e a encontrar um novo amor.
Um fantasma que ajuda os vivos a superar o luto...eu nunca havia pensado nesta possibilidade! Para mim, os fantasmas estavam ligados a um vínculo eterno, uma dor indissolúvel. Aliás, a dor causada pela perda não é a última a desaparecer? A dor ainda está por ali, latejando, e você já nem liga mais ela ao fato. Meus fantasmas, concluí com tristeza, poderiam ter se esforçado mais e me auxiliado no processo de luto.
Após informar o destino ao motorista e espantar com certo descaso os fantasmas que se debatiam ao meu lado, afinal pude reunir forças para conversar com o taxista graças ao ar gelado da climatização:
- O senhor já levou muitos passageiros ao cemitério hoje?
- Nenhum, disse ele, me olhando pelo espelhinho.
- Acho que este feriado vai acabar sendo extinto. Hoje em dia ninguém mais quer ser enterrado. A moda agora é ser cremado - respondi enquanto admirava pela janela a horda de gente sorridente que desfilava pelas ruas.
- Mas isso é muito caro! Eu disse para minha esposa: “Como é que eu posso morrer sabendo que vou te deixar uma conta de R$10mil para pagar? Que amor seria esse?”. Decidi fazer doação de corpo.
- Doação de órgãos, corrigi ele.
- Não. Doação de corpo. Doei meu corpo para a Faculdade de Medicina. Assim ela só vai gastar R$29, que é o preço do Atestado de Óbito.
Sem saber como responder a isso, fiquei imaginando meu corpo nu deitado sobre uma mesa inox sendo autopsiado por um grupo de jovens estudantes de medicina. Não, definitivamente não. Mas que importa o destino do corpo?, concluo após dedicar mais uns minutos a esta questão. O importante é saber se meu fantasma terá razões para vagar por aí, ou se farei uma passagem vapt-vupt para o outro mundo. Meu estilo sempre foi "ir embora sem ficar olhando para trás". Será que ainda há tempo de escolher como será minha partida, São Pedro?
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