Passagem para Vênus
Meu nome é Crystal e eu cresci em uma comunidade alternativa na região do Kansas, a chamada Comunidade Fort Hill. Eu vivia na Casa dos Fundos, juntamente com as demais crianças, onde fomos criadas todas juntas, sem a companhia de nossos pais. Eu mal conheci minha mãe, embora ela vivesse com os demais adultos a poucos metros de distância, na Casa Grande. Você pode não me acreditar, mas eu tive uma infância de sonho, cheia de brincadeiras, música e natureza. Raramente saíamos da comuna ou tínhamos contato com os nossos vizinhos, e até mesmo nossa escolarização foi feita em casa. Em geral éramos apenas nós, as crianças, nossos pets e os nossos tutores. Isto somente mudava em em dias de festa e quando havia saraus musicais
Ah, os saraus musicais! Desde cedo fui a estrela destes pequenos shows privados em que passávamos horas cantando juntos. Todos pareciam admirar a minha voz, especialmente Mel, que me olhava com seu olhar estático e profundo e me acariciava longamente os cabelos, como recompensa pelo meu dom. Toda vez ele nos explicava que uma linda voz é uma dádiva divina, pois cantar é falar a língua dos anjos. “Sem treinar nossa voz, não estaremos prontos quando chegar o momento”, ele nos advertia.
Até então, minha vida em Fort Hill tinha sido um longo período, formado por dias felizes e iguais uns aos outros, mas tudo mudou no apagar das luzes do ano de 1973. O dia 5 de janeiro de 1974 estava próximo e com ele, o momento que que embarcaríamos na espaçonave que nos levaria para viver em Vênus. O clima na comunidade era de pura excitação. Já não havia mais tempo a perder com as tarefas do dia a dia: passávamos os dias inteiros treinando nossos cânticos. Por isso, no dia da festa, praticamente não havia o que comer ou beber e a casa estava imersa em um caos inimaginável. Porém, nada do que é terreno nos perturbava. Reunidos no jardim traseiro da casa, nos embalávamos ao ritmo das músicas sob a luz suave da lua. Naquela noite, imbuída de um sentimento místico de comunhão com os demais e com a natureza eu coloquei toda a minha alma virginal na canção que entoava. Aos poucos, todos foram calando para me ouvir cantar, contagiados pelo meu êxtase.
Quando a canção terminou, reparei que todos me admiravam, estáticos. Ninguém emitia um som com medo de romper a magia do momento. Até Mel me gratificou com um sorriso especial. Mais tarde, eu seria escolhida a coordenadora de nossos exercícios musicais pelo tempo que nos restava na Terra.
Naquela noite ele me pediu que fosse com ele ao seu quarto, onde cantou para mim com sua voz anasalada uma canção sem palavras, que mais parecia um gemido. Após algum tempo ele me confessou que seu sonho era ser cantor: “Uma bela voz é o maior presente de Deus pode dar a qualquer um de nós”, ele repetia mais uma vez. Porém, os críticos não tinham sido capazes de entender o novo conceito musical que ele estava propondo, cheios de melodias dissonantes, dizia ele. Eles preferiam os blues e a country music que ele tocava em seu banjo todas as quartas à noite no bar mais agitado da cidade.
Após uma sessão interminável de cantorias e carícias ele me perguntou, a mim, uma adolescente sem formação musical nem malícia, o que eu achava da sua voz. Eu, que nunca soubera mentir, preferi omitir. “Eu não entendo nada de música. Como poderia avaliar sua voz?”. Minha recusa em tecer elogios foi mal-recebida e suas carícias, interrompidas. Virou-se de lado e colocou um pequeno selo sob a língua. Sem entender o que se passava, pela primeira vez em minha vida eu via alguém consumir LSD.
Após alguns minutos, ele não parecia mais ter consciência de minha presença ao seu lado na cama. Pude então relaxar e passei a fazer uma investigação detalhada das fotos, discos e livros espalhados pelos quatro cantos do quarto. Aos poucos, contudo, comecei a reparar nas palavras que ele dizia. Parecia estar me confundindo com outra mulher, a quem pedia perdão repetidas vezes pelos seus erros. “Não chore, por favor, eu prometo que não vou mais mentir. Eu não vou trair você, nem vou te abandonar. Por favor não me deixe só, eu tenho medo”. Ele então se encolheu na cama em posição fetal e começou a emitir um lamento, como um choro de uma criança, que me fez lembrar de suas canções. Pouco mais tarde, eu conseguiria me esgueirar de volta ao meu quarto na Casa dos Fundos e me juntar a cinco dos meus companheiros de infância que dormiam a sono solto e inocente sobre uma mesma cama. Depois daquele dia, ele parecia ter-se esquecido de mim.
Você talvez não esteja entendendo por que dávamos tanta importância à música, mas Mel nos ensinava que os habitantes de Vênus não conversam como nós, eles emitem sons semelhantes a canções, que são capazes de transmitir emoções e intenções de modo puro, sem interferência nociva das palavras. Assim, eu e meus companheiros da comunidade passamos os próximos dias reunidos sob minha batuta, por assim dizer. Na verdade, nós nos conhecíamos há tanto tempo e tão intimamente, que bastava um olhar meu para que eles entendessem meus comandos. Nos sentíamos todos interconectados por linhas invisíveis, e a mim cabia puxá-las para um lado ou para o outro, como em um show de marionetes. Nunca mais em minha vida, eu me senti tão intimamente ligada a nenhum grupo.
Embora passássemos os dias cantando, todos se perguntavam em seu íntimo se estávamos prontos para a viagem. Resolvemos realizar uma excursão pelo sótão da Casa Grande para localizar a tábua de Ouija e organizamos sessões exotéricas para perguntar aos espíritos sobre o futuro que nos aguardava. Apesar da insistência de todos nós, a tábua permanecia muda, nos fornecendo apenas respostas evasivas. Quando estávamos quase desistindo, veio uma mensagem a mim dirigida: “Crystal, sua mãe não irá para Vênus”. Todos me olharam espantados. Eu não tinha a menor idéia do que dizer, pois minha mãe nunca me passava pela cabeça, tal era a nossa falta de convivência.
O dia 5 de janeiro chegou e passou, sem que nada de excepcional acontecesse. Mel nos explicou que os venusianos tinham concluído que nós ainda não estávamos prontos para a viagem. Embora nada fosse dito, eu senti que todos culpavam minha mãe e a mim pelo fracasso. Mas o que é que nós tínhamos feito?
Naquela noite, Mel me conduziu novamente ao seu quarto, mas, dessa vez, não haveria nem cantorias, nem LSD. Na manhã seguinte, eu dormia encolhida em um canto do colchão quando fui despertada ao som de umas batidas leves na porta do quarto. Quando a porta se abriu, vi que suas duas esposas adolescentes tinham vindo me buscar para me dar um banho. Logo eu sentiria as mãos delas esfregando minhas costas e braços com movimentos circulares, compassivos, apaziguadores. Meus cabelos recém-lavados foram decorados com flores do campo e, pouco depois, fui levada à cozinha, onde passaria a trabalhar com as demais mulheres no fabrico do pão, no preparo das refeições e na tarefa interminável de lavar e secar a louça. Desde aquele dia em que minha infância terminou, até anos mais tarde, quando a comunidade se dissolveu, meus dias se resumiram às tarefas domésticas na comunidade e, eventualmente, a saraus. Mas o meu canto havia perdido a sua magia.
P.S.: Esse conto foi livremente inspirado nos relatos sobre a comunidade de Fort Hill e de seu líder Mel Lyman.
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