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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Os subaks e o ato divino de distribuir as águas de irrigação em Bali

O trabalho realizado por um antropologista e um ecologista na década de 1970 mostrou que o sistema milenar de gerenciamento das águas de irrigação das lavouras de arroz em Bali era mais eficiente do que as técnicas de plantio de arroz então adotadas no Ocidente.

plantio de arroz em Bali

Quando em 1856 o explorador britânico Alfred Russel Wallace visitou a ilha de Bali, na Indonésia, ele se deparou com um pequeno recanto do paraíso, quase desconhecido no resto do mundo. Rodeada de recifes de coral e esparramada no entorno de montanhas de mais de 2000m de altitude e dois vulcões ainda ativos, a ilha possuía uma vegetação luxuriante e muitos templos hindus. Suas encostas esculpidas em terraços e recobertas de plantações de arroz, sugeriam que ali reinava uma eterna primavera. Contudo, nas demais ilhas situadas nas proximidades, a situação era bem diferente: Wallace reparou na existência de manchas amarronzadas em suas encostas, indicativas de seca.

Ao visitar o interior da ilha, ele reparou que a cultura do arroz era feita em terraços inundados, onde nadavam enguias e peixes entre os pés de arroz, garantindo mesa farta aos nativos. Os terraços que recobriam as encostas das montanhas eram atravessados por um conjunto intrincado de canais, aquedutos, pequenas comportas de madeira e túneis escavados à mão na rocha, idealizado a centenas de anos, que garantiam que a água da chuva acumulada em crateras vulcânicas no alto das montanhas irrigasse toda a superfície cultivada. 

Quando Stephen Lensing visitou Bali em 1971, as coisas já tinham mudado bastante. À esta época, Bali tinha sido descoberta pelo turismo de massas e experimentava a necessidade urgente de aumentar a sua produção agrícola para alimentar os nativos e as levas crescentes de turistas. O governo então decretou que as práticas milenares de cultivo da terra até então adotadas não eram patrióticas, e que os colonos deveriam passar a adotar as técnicas de plantio de arroz utilizadas no Ocidente. O governo de Bali estava ciente do efeito arrasador na produção de arroz na China comunista provocado 10 anos antes pela imposição de técnicas de plantio inadequadas por Mao, que havia levado milhões de chineses à morte pela fome. Por isso, ele resolveu que em Bali seriam empregados os chamados “pacotes tecnológicos”, que continham grãos de arroz de crescimento rápido, pesticidas e fertilizantes distribuídos gratuitamente, e que o número de plantios por ano deveria aumentar. Essa modificação nas técnicas de plantio viria a ser conhecida como a Revolução Verde.

Embora a produção de arroz tenha aumentado em cerca de 2% quando os balineses começaram a utilizar os pacotes tecnológicos, logo começaram a aparecer inúmeros problemas. Os grãos de arroz de crescimento rápido necessitavam de um volume maior de água para se desenvolver, e isso levou à disputas dos colonos pela água de irrigação. Como a água não era suficiente para todos, as épocas de plantio adotadas por agricultores situados nas mesmas encostas passaram a ser diferentes. 

Muitas pragas de insetos e outros organismos passaram a atacar as lavouras, e parte das encostas se tornou árida. O excesso de fertilizantes utilizado nestas terras era levado pelos rios até o mar, provocando a formação de manchas verdes no oceano devido ao supercrescimento de algas e a consequente morte de bancos de corais. Embora os colonos utilizassem quantidades crescentes de pesticidas, bem como grãos de arroz produzidos por biotecnologia para serem resistentes às pragas, as soluções não pareciam ser eficientes a longo prazo, e novos problemas logo apareciam.

Durante os meses em que Lensing esteve em Bali em 1971, ele ficou alojado na casa da família de um monge, e dividiu seus dias entre o surfe e os bares da moda. Extasiado com a cultura da ilha, ele decidiria mais tarde se tornar antropólogo e acabaria voltando à Bali durante seu doutorado para estudar os templos hindus. 

Após algum tempo pesquisando junto à comunidade local, ele observou que a função do templo de Pura Tirta diferia muito da dos demais. Este templo é dedicado à devoção à Dewi Danu, a deusa da água, que mora em um lago no topo do Monte Batur. Lensing observou que a função principal do templo era de alojar as reuniões dos subaks, que são organizações coletivas que decidem sobre a distribuição da água de irrigação entre os agricultores. Cada subak é formado pela associação de 50 a 400 colonos que vivem em áreas adjacentes de uma mesma colina e que tomam decisões democráticas sobre a distribuição da água, à despeito do sistema de castas vigente na sociedade malaia. Para os balineses, o gerenciamento da água é considerado uma forma de adoração à deusa das águas, o que explica que as reuniões dos subaks sejam feitas no templo das águas. Para eles, “a voz dos subaks é a voz de Deus” e suas decisões não devem ser contestadas pela comunidade. 

Porém, à época da Revolução Verde, Lensing observou que entre as comunidades de agricultores havia um forte descontentamento com a situação vigente nos subaks. A crescente disputa entre colonos pelas águas de irrigação devido ao uso de sementes de crescimento acelerado resultara em uma situação privilegiada dos terrenos mais elevados, e seca nos terraços situados mais abaixo. Por conta disto, os colonos insatisfeitos começaram a sabotar as modificações no sistema de comportas realizadas pelo governo. 

Quando Lensing e seu colega, o ecologista James Kremer, realizaram simulações por computador da situação nas lavouras de arroz, eles descobriram que a razão de todos os problemas atuais estava no mau gerenciamento d’água. Quando todos os terrenos adjacentes realizavam o plantio e a colheita ao mesmo tempo, as pragas eram exterminadas naturalmente nos períodos de escassez de nutrientes. O trabalho de Lensing e Kremer mostrou aos oficiais do governo e aos agricultores e governanças locais, que o plantio do arroz funcionava melhor quando o gerenciamento da água era deixado ao encargo dos subaks, que forneciam aos colonos indicações de sincronização ou de dessincronização de suas culturas aos subaks vizinhos em função da abundância de água e do aparecimento de pragas, formando um sistema de autogestão. 

Nos anos 1980, quando a população voltou a utilizar os subaks no gerenciamento de água, a situação das lavouras melhorou muito, e o uso de pesticidas diminuiu abruptamente. A compreensão da importância deste sistema no sucesso do plantio de arroz que resultou deste processo fez com que o subak balinês fosse colocado na lista do Patrimônio Universal da UNESCO.

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