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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Os índios Ticuna e seu Messias

 

 

Para ouvir a versão NARRADA no Youtube:  clique aqui

 Houve um tempo em que a Terra era só escuridão e frio por causa de uma árvore samaumeira. A árvore era tão grande que a sua copa cobria completamente o céu, não deixando transparecer o que existia do outro lado. O Deus Yo'i, resolveu então atirar caroços de fruta contra a copa da árvore. Após várias tentativas, um buraco se formou na copa, deixando passar um feixe de luz, que tocou a terra pela primeira vez desde que o mundo havia sido criado. Neste momento, o Deus Yo'i reparou que havia uma preguiça lá no alto, agarrada a um ramo da árvore, espiando atentamente tudo o que se passava cá embaixo. Para afugentar a preguiça, Yo'i atirou mais caroços com redobrada energia, mas a preguiça não se mexeu e os caroços tocaram o céu, transformando-se em estrelas. 

 Inconformado com a dificuldade de afugentar a preguiça, Yo'i resolveu reunir-se com o Deus Ipi e ambos decidiram pedir ajuda aos animais da floresta. No entanto, nem o trabalho incansável de um pica-pau nem o uso de um machado para cortar o tronco da árvore surtiram efeito: as cicatrizes feitas no tronco da samaumeira depressa se fechavam e a árvore continuava em pé. Por fim, os deuses enviaram formigas-de-fogo para cegar a preguiça e esta acabou por cair no chão, juntamente com a samaumeira. Foi assim que a luz inundou a face da Terra, e o sol, o céu e as estrelas puderam finalmente ser vistos.

 Com a chegada da luz, o mundo foi finalmente invadido pelas cores e tudo se encheu de beleza. Para Etüena, que acompanhava em êxtase esta transformação da Terra, apenas uma coisa destoava: os peixes. Embora eles nadassem agilmente pelas águas dos rios e riachos, com suas escamas refletindo o sol em mil pontos de luz, os peixes não tinham cores. Inconsolável, Etüena um dia sentou-se à beira do rio, esperando a piracema surgir. Quando o rio começou a fervilhar com a agitação dos peixes que nadavam rio acima para o acasalamento, Etüena tirou-os vivos do rio um a uma e pintou suas escamas com cores que nunca mais sairiam. 

 Um dia, vendo aqueles peixes coloridos que passavam pelas águas vermelhas do Igarapé Eware, o Deus Yo'i resolveu fazer uma isca com uma raiz de mandioca e a lançou nas águas com sua vara de pescar. À medida que pescava, Yo'i transformava os peixes em pessoas, criando assim os primeiros índios Ticuna. Os descendentes dos índios Ticuna viveram durante séculos e séculos felizes e despreocupados nas selvas da Amazônia, lutando ocasionalmente com os índios das tribos vizinhas da região do Alto Solimões. Seus embates eram pela posse de terras bonitas e férteis, onde pudessem construir suas cabanas e cultivar seus alimentos. Nada mais os preocupava neste mundo de Deus.

 Porém um dia, no século XVII, os índios Ticuna entraram em contato com os primeiros homens brancos que surgiram em suas terras. Eles eram padres jesuítas espanhóis que vinham subiam o rio Solimões em busca de tribos selvagens que pudessem ser catequizadas. Nos anos seguintes, inúmeras missões religiosas foram fundadas nas margens dos rios, porém o sucesso dos missionários em afastar os índios da devoção ao seu Deus Yo'i foi relativamente pequeno.

 Foi somente no final do século XIX, quando o governo concedeu aos homens brancos títulos de propriedade das terras dos Ticuna, que os indios foram efetivamente subjugados. Os homens brancos desejavam invadir suas terras para extrair o látex da seringueira. Nessa época, a Amazônia vivia a febre da borracha. Manaus atingia seu apogeu econômico, tornando-se uma das primeiras metrópoles do mundo a ter energia elétrica. Suas ruas logo foram invadidas pela iluminação pública e pelos bondes elétricos. 

 Na região do Alto Solimões, a extração do látex passou a ser dominada por algumas poucas famílias que criaram um monopólio ao se apropriaram das terras indígenas e escravizaram os Ticuna que ali viviam. Os invasores expulsaram os índios das malocas onde viviam, e os clãs foram dissolvidos em pequenos grupos que viviam dispersos na floresta. Uma vez subjugados, eles trabalhavam na extração do látex em troca de itens supérfluos como açúcar, fósforos, perfumes e cachaça.

 Todos os índios que se recusavam a ser subjugados pelos capitães dos quartéis instalados em suas próprias terras e não queriam trabalhar na extração da seiva ou entregar aos brancos o produto de sua pesca, ou a farinha de mandioca, as peles e os artesanatos que produziam eram submetidos a espancamentos e castigos físicos durante dias seguidos. Neste intervalo, eles ficavam trancados sem comida, acorrentados no porão do quartel.

 Finalmente dominados pela força, os Ticunas passaram a acreditar que o Deus dos brancos, Ipi, era sim mais poderoso que o seu Deus, Yo'i, que não tinha sido capaz de protegê-los de tamanho sofrimento. Eles aceitaram então ser cristianizados por missionários católicos e evangélicos, na esperança de que o Deus dos brancos os libertasse do sofrimento. O auge da conversão dos índios aconteceu quando, em 1972, o irmão José Francisco da Cruz chegou às terras Ticuna vindo do Peru, anunciando que o fim dos tempos estava próximo.

 A fama de milagreiro do irmão José da Cruz era tanta que muitos índios deixavam seus igarapés e iam para as aldeias às margens do rio Solimões para ver sua chegada.  Pouco a pouco, formou-se uma procissão fluvial que o acompanhava de aldeia em aldeia. As longas barbas de José Francisco da Cruz e a batina que usava faziam com que fosse confundido com a imagem de Cristo. Em pouco tempo se espalharia entre os índios a notícia de que aquele que libertaria os Ticunas da opressão havia finalmente chegado.

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