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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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O vizinho de cima

 


Eram 4 horas da tarde quando Vera saiu com seu cachorro para o passeio vespertino de todo dia pelo bairro de Botafogo. Ao passar pelo portão do prédio, chegou um grupo grande e barulhento, encabeçado por um senhor muito bem apessoado, que educadamente segurou o portão para que ela passasse primeiro, pois naquela confusão de entra-e-sai, o seu cachorro tinha se assustado e puxava, teimoso na direção contrária, querendo voltar para o a segurança do lar. Ele sorriu para ela com o sorriso cúmplice dos que amam os cães e conhecem bem suas manias e defeitos. Ela retribuiu o sorriso agradecida, pois naqueles dias pós-pandemia a maioria dos vizinhos e seus convidados jamais segurava o portão do prédio ou a porta do elevador para fazer uma gentileza aos outros, como se esse ato de simples civilidade fosse uma condenação à morte. Ou será que essa economia de modos não tinha nada a ver com a pandemia?

 

 

Ao passar por esse visitante que entrava orgulhoso, trajado em suas vestes domingueiras, ela recebeu uma explicação inesperada. “Sou o pai do Carlinhos, do “Malhação”. Viemos para a festa de aniversário dele”. “Ah, que bom. Aproveitem!”, ela respondeu, e tomou ligeira o seu rumo enquanto o grupo de familiares entrava animado para a festa do Carlinhos. No retorno do seu passeio, ela parou em frente ao balcão da portaria, onde o porteiro passava o dia inteiro sentado, assistindo TV. Relutante, ele desviou os olhos da programação e a cumprimentou, “Boa tarde, Dna. Vera, posso lhe ajudar?”. “Sim, seu Silva, me diga uma coisa, quem é o Carlinhos, que hoje está de aniversário?”. “É o seu vizinho de cima, do 806, aquele rapaz simpático que trabalha na Globo. Ele faz o papel do Marcus, na Malhação. Gente boa, minha filha adooora ele!”. “Ah, sim, o Marcus. Claro, claro. Muito obrigada, seu Silva.”

 

Ela jamais havia assistido à novela Malhação em toda a sua vida. Mas o Carlinhos ela sabia bem quem era. Como sua vizinha de baixo, ela conhecia detalhes íntimos da vida dele e de sua mulher. Não sabia que ele era ator, mas sabia a hora em que ele dormia e acordava, o horário em que eles gostavam de transar, os dias em que ele estava de bom humor e cantava a plenos pulmões no chuveiro à hora do banho. Sabia também que ele tinha uma vida social bem animada, o desgraçado. Toda as noites, às duas da manhã, quando ele chegava em casa acompanhado de sua trupe de amigos, ele, sua mulher e seus convidados arrastavam as poltronas por 3 metros desde a sala até a varanda, onde passavam a madrugada inteira falando alto, bebendo cerveja e jogando as latinhas no chão.

 

Como a varanda dele ficava colada à janela do seu quarto, o barulho era infernal. Na primeira vez que isto aconteceu, logo após ela se mudar para o prédio, ela esperou atônita que eles se acalmassem, para poder enfim voltar a dormir. Mas como a coisa toda durava horas, ela acabou perdendo a paciência e interfonou para o seu apartamento para pedir educadamente que fizessem silêncio. Mas o interfone soou solitário na cozinha por vários minutos, sem que ninguém atendesse. No dia seguinte, com a cara inchada devido à noite mal dormida, ela falou com o porteiro sobre o que tinha acontecido e ele prometeu que falaria com o morador do 806 quando este passasse pela portaria. Ao retornar para casa à tardinha, Vera soube pelo porteiro que o seu vizinho havia se desculpado e dito que aquilo não se repetiria. Mas noite após noite, a barulheira era a mesma. O interfone já nem soava mais. Ele havia sido desligado para que a reclamação dos vizinhos não importunasse a festa. Nem o síndico foi capaz de dar uma solução àquele problema.

 

Assim sendo, Vera logo estabeleceu uma rotina. Toda a noite ela ia para a cama cedo, mas meia hora antes da barulheira começar, seu despertador tocava. Ela então tomava um Rivotril, enfiava umas bolinhas de silicone nos ouvidos e, munida do seu edredom, ia deitar-se no piso do quarto de empregada, que era a peça mais distante da varanda do vizinho. Durante algum tempo ela ainda lutava contra a irritação e o barulho, que insistia em chegar até ela, mas finalmente, vencida pela ação do remédio, caía no sono. Às seis horas, quando acordava para ir trabalhar, ouvia o vizinho recolhendo as latinhas de cerveja espalhadas pelo chão, e arrastando as poltronas de volta para a sala de estar. Ao sair do banho ainda escutava o ranger da cama, à hora que ele se jogava bêbado sobre o colchão para usufruir do sono dos justos. Um sono a que ela não tinha direito.

 

Já fazia um ano e meio que Vera morava naquele prédio, quando um dia, enfim, ela se deu conta de que algo tinha mudado na rotina do vizinho. Toda a vez que Vera cruzava com ele ao passar pela portaria, ela observava que os cabelos dele, que antes eram cacheados, brilhantes e volumosos, agora estavam sempre sujos, com aspecto desmazelado. As festas da madrugada, que antes eram causa de tortura sem fim, tinham escasseado lentamente, até desaparecerem. O ranger da cama de casal nas manhãs de sábado seguido de cantoria no chuveiro sumira. No seu lugar, tinham ficado as brigas de casal, intermináveis, seguidas de soluços e portas batendo. Um dia Vera não resistiu e perguntou ao porteiro “Como vai o Carlinhos, seu Silva, tudo bem com ele e sua mulher?”. “Ai, Dna. Vera, nem lhe conto! O seu Carlinhos foi demitido da Globo. Disseram que ele já estava muito velho para trabalhar no ‘Malhação’. Parece que a coisa agora tá meio difícil, pois eles não têm pagado o condomínio. A faxineira deles, a Iraci, me contou que, apesar de a bagunça da casa ter aumentado, eles propuseram pagar menos pela faxina.”

 

Embora os barulhos da madrugada tivessem cessado, Vera ainda dormia no piso do quarto de empregada uma vez ou outra. Quando os problemas no trabalho insistiam em desfilar pela sua cabeça noite adentro, era ali, deitada no chão, enroscada em posição fetal, o único lugar do mundo onde ela conseguia enfim relaxar e dormir. Sua gata, numa declaração de estima e admiração pela dona, tinha desenvolvido o estranho costume de abrir a porta do armário com suas unhas e dormir lá dentro, entre os blusões de lã guardados no fundo da prateleira mais baixa.

 

Um dia, Vera se deu conta de um novo barulho vindo de cima. Ela encostou o ouvido na parede do quarto menor e escutou nítidamente hum-pfff, hum-pfff, hum-pfff, parecia um ferro a vapor. O barulho, ela reparou, não cessava. Era dia e noite, noite e dia. Um mistério! No entanto, as coisas pareciam ter melhorado para o casal. As brigas tinham cessado e ele agora se vestia como um empresário. No sábado seguinte, Vera encontrou a mulher do Carlinhos no shopping Rio Sul, cheia de sacolas de compras. “As coisas parecem andar de vento em popa!”, Vera comentou consigo mesma. Ao chegar no seu prédio, a curiosidade foi mais forte do que o bom senso e Vera perguntou ao porteiro “O Carlinhos arrumou outro papel em novela?”. “Não”, respondeu seu Silva, lacônico, e voltou sua atenção para a TV.

 

Quando o Tonico foi visitar a Vera naquele fim de semana, ela logo se lembrou de mostrar aquele barulho estranho vindo do apartamento acima para ver se ele desvendava o mistério. “Vera, você vai cair do céu com a história que eu vou contar. Esse barulho é igualzinho ao que eu escutava vindo do apartamento acima ao do meu pai, lá na Barra da Tijuca. O dono do apartamento não morava lá, ele só passava de vez em quando para pegar a correspondência e dar uma olhada rápida no apartamento. Era o vizinho ideal”.

 

“Um dia apareceu uma mancha de umidade no teto do apartamento do meu pai. Foram meses mandando cartas para o vizinho de cima e reclamando com a síndica, mas nada era feito. Até que um dia veio o oficial de justiça e ordenou o arrombamento da porta de entrada para que o reparo no vazamento fosse feito. Você não vai acreditar... Quando a porta enfim se abriu, dava para ver uma floresta. Tinha pé de maconha plantado para todo lado.  Com iluminação especial para estimular a fotossíntese e máquina para gerar vapor d’água, as plantas chegavam até quase o teto.  Era uma beleza de se ver, mas a polícia foi chamada e o proprietário do apartamento foi preso. O barulho que você escuta dia e noite vinha do vaporizador de água”.

 

Pouco tempo depois Vera se mudou para outro prédio. Do Carlinhos ela nunca mais ouviu falar, mas torcia para que ele estivesse bem. Afinal de contas o rapaz era simpático. Ela agora morava em um apartamento de cobertura. “Vizinho de cima, nunca mais!”, ela bradava em plenos pulmões, enquanto fazia o tour de praxe pelo apartamento, mostrando cada uma das peças para as suas visitas. “Meu vizinho de cima agora é Deus”.

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Tags: infiltraçãoartista da Globovizinhobarulhocondomínio

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