O sotaque do canto das baleias
Conto passado em um futuro próximo em que uma empresa de safari aquático usa gravações do canto de acasalamento dos cachalotes para aumentar a satisfação dos seus clientes e os lucros da empresa.
Naquele dia partimos cedo de Caravelas. O barco vinha com a lotação máxima de passageiros, boa parte deles, estrangeiros. O avistamento de baleias estava na moda e somente a nossa companhia era capaz de garantir aos seus clientes um encontro de perto com as bestas gigantes, que é como o meu patrão chamava estes animais magníficos. Estava na época da reprodução, quando os machos vêm de longe para encontrar as fêmeas que habitam as águas quentes do nosso litoral.
Durante as 3 ou 4 horas de viagem até o arquipélago de Abrolhos, os turistas se distraíram exibindo uns aos outros os seus equipamentos fotográficos de última geração e o seu conhecimento enciclopédico sobre o assunto. Enquanto isso, servíamos saladas de frutas e sucos tropicais e, aos mais audaciosos, caipirinhas.
Se o patrão podia garantir a satisfação dos seus passageiros, ele não deveria esquecer que devia isso ao meu charme e aos rapazes do CETI. Há exatamente um ano, um grupo de pesquisadores sobre a linguagem das baleias Dominicanas havia embarcado num de nossos safaris com seus equipamentos de gravação cuidadosamente protegidos e seus olhares cobiçosos voltados para a tripulação feminina. Pouco depois, eles tentavam nos seduzir com o canto de acasalamento dos cachalotes da costa norte-americana. Nem acredito que tive a ousadia de pedir a um deles uma amostra daquela gravação como lembrança dos dias que passamos juntos!
Desde então, sempre que o trabalho estava tranquilo e eu conseguia me recolher mais cedo, eu punha aquela gravação para tocar em loop. Era de cortar o coração... Uma sequência de cliques, murmúrios e gemidos, à qual meu amigo dava o nome de coda. Aquilo era o canto com que o macho chama as fêmeas para um encontro, após longos meses nadando solitário pelas profundezas frias e escuras do talude continental, desde o Alasca até o Caribe.
Na primeira vez que usamos o equipamento do barco para reproduzir aquela gravação, era finalzinho de outubro. Naquele dia, havíamos partido de madrugada e chegáramos à Abrolhos antes das 9h da manhã. Como a temporada dos safaris ecológicos ainda não havia começado, o barco levava apenas a tripulação. Durante aquela viagem, comentei com meus colegas sobre a gravação do canto de acasalamento dos cachalotes Dominicanos que trazia em minha mochila.
Logo que o motor foi desligado, decidimos ligar os alto-falantes subaquáticos e botar a gravação para tocar a todo volume. Voltamos a fazer isto várias vezes ao longo do dia até que, no meio da tarde, fomos surpreendidos por um cardume de fêmeas no horizonte. Ficamos boquiabertos, sem coragem de falar ou dizer qualquer coisa e com isto quebrar o encanto do momento. Os cachalotes vinham de Nordeste, lá onde plataforma continental dá lugar às águas profundas e ricas em alimentos. Embora o canto de acasalamento continuasse tocando em loop, as fêmeas pareciam confusas. Após algum tempo nadando em torno de nós, seu dorso roçando contra o casco do barco, elas resolveram partir para longe.
Quando a temporada dos safaris se iniciou, meu patrão se lembrou daquele dia e resolveu usar a gravação para garantir aos turistas uma experiência superior à da concorrência. O cardume de fêmeas se aproximou uma vez mais do barco, para delírio dos turistas. Todos se maravilharam ao verem de perto o dorso das baleias, sua pele recoberta de cracas como o casco de um navio. Os cachalotes não se fizeram de rogados e nos banharam com os jatos d’água que sopraram de seus espiráculos, desfilando majestosos diante das lentes de nossas câmeras fotográficas. O truque, porém, logo deixaria de dar resultados: as baleias haviam se dado conta de que o canto era uma propaganda enganosa.
O fracasso da experiência me levou a procurar a ajuda de um amigo oceanólogo. Ele me explicou que baleias de diferentes regiões do globo utilizam como canto de acasalamento variações de um mesmo coda. Definitivamente, o sotaque do macho norte-americano não fazia sucesso nas águas quentes da costa baiana. Além disso, as baleias pareciam ter avisado seus pares sobre a farsa a que estavam sendo submetidas, e elaborado uma estratégia para evitar encontros fortuitos com o nosso barco.
Porém naquele dia que agora me vem à lembrança, enquanto viajávamos em direção ao arquipélago, vi uma série de manchas verticais imensas na tela do sonar, que mais pareciam monolitos flutuando pacificamente a algumas dezenas de metros do casco de nosso barco. Imediatamente ordenei que desligassem o motor e chamei os turistas para a cabine do capitão. Aquelas manchas, expliquei, eram um cardume de baleias que dormiam em pé, oscilando graciosamente ao sabor das correntes profundas. Ao lado das manchas maiores, via-se uma pequena mancha. Era um filhote, que dormia tranquilamente, sob os cuidados de um cardume de fêmeas. Minha explicação, porém, foi recebida com descrédito.
Quando meu patrão ordenou que uma vez mais utilizássemos o canto Dominicano para atrair as baleias, todos puderam comprovar a veracidade do que eu havia dito. Tirados do seu repouso pela gravação, os cachalotes conduziram o filhote para longe em segurança. Enquanto isto, uma das fêmeas do cardume se aproximou do barco erguendo-se verticalmente para fora das águas na tentativa de desviar nossa atenção das demais, antes de finalmente dar uma pirueta no ar e mergulhar com estardalhaço para ir juntar-se ao grupo. Aquela gentil criatura se dera ao trabalho de nos distrair pacificamente, quando um de seus gritos potentes bastaria para romper nossos tímpanos e livrar-se de nós.
A exibição de estratégia, espírito de solidariedade e complacência dos cachalotes para com a nossa farsa me fez compreender que as bestas éramos nós. Me dei conta do absurdo que era utilizarmos o canto de acasalamento para ludibriar uma criatura em vias de extinção na tentativa de aumentar os lucros de uma empresa turística! Na viagem de volta para Caravelas, vim isolada em um canto do barco, meus pensamentos vagando perdidos pelas profundezas sombrias do talude, em busca do rastro das criaturas colossais.
Aquele foi o último verão em que trabalhei em um safari aquático. A partir de então comecei a cantar nos bares noturnos de Salvador. Embora vez ou outra os gerentes dos bares ou os clientes reclamassem, meu repertório incluía apenas músicas nacionais. Agora eu sabia que apenas aqueles que falam com a sua própria voz são realmente capazes de conquistar as almas solitárias que vagam perdidas por esse mundo de Deus.
Voltar