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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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O sonho do Rei Momo (cap. 2)

o rei Momo, com cara de sofredor, põe a mão na testa, em meio à folia do carnaval

(Este conto é a continuação de: https://www.blogdoscontos.com.br/br/o-sonho-do-rei-momo-cap-1 )

Naquela noite que antecede a abertura do Carnaval, Nanico dorme pesado, embalado pelo batuque do terreiro e pela cerveja. Quando Luisito vê que seus olhos reviram nas orbitas e e que seus braços se movem fora de ritmo, ele se dá conta de que Nanico está novamente sonhando com sua travessia pelos canais da Babilônia.

Após reviver todas as etapas iniciais do sonho em alta velocidade, repentinamente seu sonho muda para uma marcha mais lenta, e se enche de detalhes, de sons e de sabores. Desta vez, Nanico fica deslumbrado pelas sensações que surgem em sua boca quando o vinho, oferecido durante a viagem de barco pelos canais da Babilônia, dilui a sua saliva. Ao final do primeiro gole, ele sente um travo na lateral da língua e uma secura na boca, provocada pelo sabor adstringente do vinho. O segundo copo de vinho já desce mais redondo. Muitos outros copos de vinho se seguem, e logo ele não se recorda mais da angústia que sentia ainda a pouco. 

 Na primeira parada de barco, em que ele desce às ruas para coletar os impostos dos comerciantes que vendem alimentos e bebidas aos foliões, ele tem de ser amparado pelas suas companheiras de viagem. Em pouco tempo, os dirhans entregues pelos vendedores tilintam em seus bolsos. “Vinho, dinheiro e mulheres, o que mais eu posso querer desta vida?”, ele se pergunta, sem se dar conta de que o barco faz uma nova parada, desta vez em frente aos jardins suspensos da Babilônia!

 Ele desce do barco já meio trôpego. E quando, afinal, ele pisa em terra firme, e ergue os olhos para saber de que comerciante ele vai extorquir as moedas desta vez, ele se depara com a visão mais bela de toda a sua vida. Acima do nível do chão se estende, à perder de vista, uma sucessão de patamares, apoiados um sobre os outros formando uma colina elevada em meio a esta cidade tão plana. Em cada um dos patamares crescem plantas tropicais exóticas e deles jorram inúmeras cascatas. Já é fim da tarde e o céu foi invadido por uma revoada de pássaros, que perseguem enlouquecidos os insetos. O perfume adocicado das flores exóticas e a luz dourada do sol poente refletido nas cascatas deixa todos maravilhados. A algazarra que os foliões vinham fazendo até então cessa, e todos ficam ali, parados de boca aberta, admirando a beleza deste lugar onde poucos habitantes do reino já tiveram o prazer de por seus pés. Mesmo os nobres fantasiados de escravos que escoltam o rei de araque em seus cinco dias de mandato nunca haviam sido autorizados a visitar os jardins suspensos. Aqui vive o harém do rei.

 Os companheiros do rei folião se relembram então da razão de ali estarem e cercam o rei dando tapinhas nas suas costas. “Você vai se dar bem hoje, meu caro rei. Quem não gostaria de estar no seu lugar? Ter a sua disposição todas as mulheres do harém! Que honra para a rainha, receber a visita de tão esbelta criatura em seu leito!”. E todos caem na gargalhada, movidos pelo absurdo da situação e pela inveja e ódio que nutrem por Nabonido. O grupo de foliões então sobe as escadas dos jardins e passsa por uma infinidade de alas cobertas e passarelas sobre lagos artificiais. Eles examinam deslumbrados cada detalhe arquitetônico: as alas cobertas são formadas por lajes de junco e tijolos revestidos por uma camada negra de betume, apoiados em paredes espessas. Quando enfim chegam à porta do harém, eles se despedem do rei, avisando que amanhã cedo estarão a sua espera ao pé da escadaria para continuarem a folia pelas ruas da cidade.

 Na manhã seguinte, todos querem saber como foi a noite do rei. Ele, que estava tão bêbado quando ali chegou que mal consegue se lembrar do que se passou, inventa. No fundo, ele sabe que todos desejam ouvir detalhes picantes, para manter acesa a chama da inveja. O que seria deles, nobres habituados a uma vida de regalias sem fim, se não tivessem razão para invejar mais ninguém? Só isto os mantém vivos e palpitantes...saber que ainda há mais coisas a desejar nesta vida. Ele se põe então a descrever o bacanal do qual participou com a esposa predileta do rei e algumas de suas mais belas mulheres, para delírio dos ouvintes. 

 Assim que o barco recomeça o périplo pelos canais, ele esquece da promessa que fizera a si mesmo de beber menos durante o dia de modo a chegar ainda em bom estado ao harém. E em pouco tempo, todos estão cantando e dançando inebriados, seguidos por hordas de foliões que acompanham por terra o percurso feito pelo barco ao longo dos canais. O segundo dia de folia não tem novidades. Aos poucos ele vai compreendendo que nada lhe será recusado nestes dias e que, tanto os nobres vestidos de escravos, quanto as escravas vestidas com as finas roupas de suas mestras, usam a inversão de papéis nesta festa pagã para se vingar das injustiças cometidas contra eles, em especial pelo rei.

 Os cinco dias se passam em uma orgia dos sentidos a que se entrega toda a população. Ninguém parece se lembrar das agruras do dia a dia, de seus maridos ou esposas entediantes ou de seu compromisso tácito com as aparências. Quando ao final do quinto dia chega a hora de se dirigir ao palácio do governo e declarar encerradas as festividades, ele mal se lembra de que um dia foi prisioneiro e que estes cinco dias de orgia lhe custarão caro.

 - Nanico, acorda pô! Já está na hora de você começar a se arrumar. O dia hoje vai ser longo.

- Que foi Luisito? Por que tu tinha de me acordar logo agora que meu sonho estava tão bom?!

- Bom mesmo vai ser quando o prefeito te der a chave da cidade e apertar a tua mão, e o lusco fusco da tardinha se tornar meio-dia de tanto flash que vai disparar!

- He he he. Ai que dor de cabeça! Só pode ser o tal do feitiço...

- Que feitiço, o quê, cara. Tu tomou todas ontem. Olha, ali no pátio, o mar de latinhas de cerveja rolando com o vento.

 Nanico então se dá conta de que o batuque enfim acabou. Agora só se ouve o barulho oco das latinhas se chocando umas às outras, tal qual pé de vento agitando um móbile de conchinhas. Sexta-feira! O dia tão aguardado enfim chegou. Mas e o ânimo, cadê? Ele resolve sacudir a pasmaceira, se levantar e vestir a roupa de rei Momo que sua mãe deixou prontinha, pendurada no cabide. Depois é hora de escovar os dentes com cerveja, pois está faltando água, e ir para a rua. Mal vai dar tempo para fazer uma boquinha no churrasquinho de gato antes de seguir para a prefeitura.

 Quando enfim chega a hora, Nanico já está sobre o palco montado no alto da escadaria da prefeitura. Ele olha a massa de gente a seus pés, que veio especialmente para assistir a cerimônia de entrega da chave da cidade, os carros das estações de televisão, os repórteres e os gringos que viajaram ao Rio especialmente para ver os desfiles na Sapucaí. No palco, bem próximo a Nanico, uma passista e um porta-estandarte dançam ao som do pandeiro e do bandolim, acompanhados pela platéia e Luisito, que se sacodem no ritmo. Contudo, não há nada que consiga afastar o mal-estar que Nanico tem sentido estes últimos dias. Ele disfarça a sua falta de sintonia com a festa esfregando um lenço no rosto para secar o suor frio e as lágrimas de angústia que teimam em inundar o canto do olho.

 Finalmente a batucada pára e, após um breve discurso, o prefeito entrega a chave a Nanico. Nisto, uma explosão de flashes cega todos aqueles que estão no palco. Neste momento, Nanico vê passar como em um filme projetado na fumaça do gelo seco, confete e serpentina que invade o ar, a cena final de seu sonho, da qual ele até agora não tinha sido capaz de se lembrar. Nela, o rei Nabonido recupera a sua coroa das mãos do rei de araque, sendo reconduzido ao trono, enquanto o pobre coitado que havia ocupado seu cargo durante os cinco dias de folia é decapitado. O rei então declara terminada a festa no reino da Babilônia, e o povo observa sem emoção a cabeça tombada em uma poça de sangue enquanto retorna devagarinho para casa. O desânimo é geral, pois todos terão de esperar mais um ano para cair na folia novamente. 

 À entrega da chave da cidade, se segue uma sucessão de repiques e batidas de tambor, sinalizando à todos que o carnaval está começando. Em breve há um mar de corpos suados sambando no espaço exíguo defronte a escadaria, levando os foliões a uma intimidade forçada que não parece constranger ninguém. De súbito, um vento de fim de tarde começa a soprar no centro do Rio, transformando a fumaça do gelo seco em fiapos. Nisso, Luisito vê Nanico parado no meio do palco, de boca aberta e olhos esbugalhados, a papada tremendo outra vez enquanto sua mão se cola na testa. Quase ninguém repara quando ele perde o equilíbrio e tomba na escadaria. Dois ou três companheiros de palco que viram a cena caem na gargalhada. 

 No dia seguinte será noticiado em todos os jornais que o rei Momo morreu atingido por uma bala perdida.

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Tags: bala perdidacerimônia de abertura do carnavalsacéiajardins suspensos da babilônia

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