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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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O sonho do Rei Momo (cap. 1)

rei folião abraçado a duas mulheres dança em uma jangada de juncos que navega por um canal

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- Que foi Nanico, que cara é essa?

- Nada não. Acho que eu tô nervoso com a cerimônia da entrega das chaves da cidade amanhã à tardinha.

- Que é isso, cara? É carnaval e você vai ser o melhor rei Momo de todos os tempos! Você até engordou uns quilinhos nesta última semana! Vai ficar muito lindo lá em cima do palco, com aquela faixa no peito e uma coroa na cabeça, ombro a ombro com o prefeito. Vai virar celebridade!

- Você deve ter razão. Mas é que eu tenho tido pesadelos a semana toda. Deve ser essa batucada que vira noite e dia sem parar lá no terreiro ao pé do Morro dos Prazeres. Minha rua vive cheia de despachos nestes últimos tempos, acho que alguém fez um trabalho pra mim. Desde ontem, tudo dói, e eu me sinto mal, enjoado. Ontem até fui ao médico, mas ele disse que eu não tinha nada, que era tudo psicológico. Acho que é doença do feitiço, cara. 

 O batuque recomeça, e Nanico se põe a caminhar de um lado para o outro pela casa, feito condenado. Luisito observa a papada do amigo, tremendo que nem geléia. Ele se levanta do sofá, abre a geladeira, e começa a investigar com atenção o conteúdo da coleção de caixinhas Tupperware da mãe de Nanico. Desde os tempos em que os dois eram colegas de escola, comer sempre foi um santo remédio para acalmar o Nanico. Ele volta da cozinha com um sanduíche de três andares, recheado com tudo a que tem direito, que ele entrega ao seu amigo, junto a uma latinha de cerveja.

 - Pega, Nanico. A cerveja foi presente do patrocinador dos desfiles de carnaval deste ano. Pode beber à vontade. Agora que você já está mais tranquilo, me conta o teu sonho. Faz de conta que eu sou Fróidi. Dizem que depois que a gente conta os problemas, eles encolhem.

 Nanico varre as migalhas de pão caídas no colo com as costas da mão, solta um arroto e, secando o suor do rosto com a barra da camiseta ele se ajeita na poltrona, enquanto começa a contar a Luisito o malfadado sonho.

 - Eu tenho tido exatamente o mesmo sonho nos últimos três dias. Mas cada dia parece que eu sonho com maior riqueza de detalhes um pedaço diferente da história. Não se passa na atualidade, é coisa de antigamente. Bota antigo nisso.

 O sonho se inicia com um grupo de guardas que vem abrir a porta da cela onde estou preso com outros criminosos. Eles nos levam todos juntos para um tablado de madeira, montado no centro de uma praça imensa. Lá de cima do tablado, um oficial de justiça começa a ler em voz alta para a população as ordens do rei Nabonido, escritas em uma placa de cerâmica. O povo terá de escolher um de nós para ser o rei de araque durante os próximos cinco dias. Durante este tempo, Nabonido será deposto do trono.

 Nós somos levados um a um à borda do tablado, enquanto o oficial diz o nosso nome, descreve rapidamente os crimes que cometemos e o tempo de prisão que ainda teremos de cumprir. Enquanto isso o povo se agita inquieto e grita acusações para o rei. O clima é de insatisfação. Quando chega a minha vez, o oficial diz que fui condenado por adultério a cinco anos de prisão. Neste momento, uma das mulheres que está próxima ao tablado grita “Lindo!”, a outra grita “Gostoso!”, e, imediatamente, todos caem na gargalhada. Eu demoro um pouco a descobrir a ironia contida naqueles gritos. Reparo então na minha barriga protuberante, e no fato de que olho para cima quase sempre que converso com alguém. Sim, eu sou nanico. 

 - O que? pergunta Luisinho, subitamente sem entender a história.

- Sou baixinho! Quase um anão.

- Ah! Nanico! Agora eu entendi. Pode continuar.

 “As esposas do rei vão cair de quatro”, diz outra mulher, em meio aos risos de todos. Aquilo parece ter feito com que a maioria decidisse o seu voto. Quando, chega a hora da votação e meu nome é citado pelo oficial, o povo começa a urrar em uníssono. A questão é rapidamente encerrada, e os demais prisioneiros são levados de volta as suas celas. 

 Eu sou então coroado e vestido com roupas finas, e passo a ser carregado pela multidão em um palanquim. Seguimos da praça para um cais ali pertinho e embarcamos todos em navios feito de feixes de juncos amarrados com folhas de palmeiras e madeira recobertos de betume. Ouço dois homens comentarem ao meu lado sobre a beleza do pôr do sol nas águas do rio Eufrates. Olho à minha frente e constato: o pôr-do-sol é realmente divino! O céu está todo tingido de tons dourados alaranjados que passam lentamente ao vermelho, à medida que se aproximam da linha do horizonte. Admiro aquela cena maravilhado, mas uma sensação de mal-estar me invade quando reparo que as águas do rio evocam uma carnificina.

 - Caramba, Nanico, teu sonho se passa no Iraque!

- Não sei cara, não entendo nada de geografia. Só tô te contando meu sonho!

- Tá bom, tá bom, te acalma. Continua a história, que eu tô gostando dela.

 O navio segue por um conjunto de canais retilíneos que cortam a cidade em todas as direções. Ela é imensa! Eu vejo vários prédios de dois ou três andares e, em meio a eles, uma torre altíssima. Mas tudo tem a cor de barro seco e um aspecto de aridez. Embora a cidade seja atravessada por vários canais, quase não há vegetação. Mas, quando meus olhos se voltam na direção da torre, tudo muda. Ao lado dela, eu vejo um morro alto todo recoberto por uma vegetação exótica. E ao pé do morro, um lago imenso e plácido, onde nadam aves ornamentais.

 À medida que o barco se aproxima da torre, eu reparo que o que se situa à sua frente não é um morro, mas sim uma construção imensa com o aspecto de uma pirâmide. Esta construção é formada por varandas superpostas, onde cresce uma floresta tropical. Em meio a tudo isso, jorram cascatas d’água. A irrigação é feita por um aqueduto que traz de longe a água que alimenta as cascatas e mantém a floresta verdejante.

 No nosso barco, viaja uma banda de músicos que toca canções animadas. Todos os passageiros parecem conhecer as letras destas músicas e cantam a plenos pulmões. O povo canta e dança, e se abraça e se apalpa. Parece um bloco de carnaval. Ali, ninguém tem dono. Em meio a toda aquela animação, eu sigo inerte em meu canto, acuado. Pareço prever que tudo vai terminar em tragédia. Os foliões ao meu redor se dão conta do meu desânimo e logo me alcançam uma ânfora repleta de vinho. “Vinho do Egito”, me diz um deles, “coisa fina para o nosso rei”. Enquanto beberico o vinho, reparo que os demais foliões, vestidos de escravos, se contentam com uma cerveja escura e morna.

 À medida que nosso barco navega pelos canais que atravessam a cidade, o povo se aglomera nas margens e começa a cantar e dançar ao som da nossa banda, se entregando a uma orgia dos sentidos. De tempos em tempos o barco ancora e descemos todos juntos para extorquir impostos de um rico comerciante qualquer. “Guarda, que o dinheiro é seu”, me diz um deles, “Aproveita a Sacéia, que nestes cinco dias você será o rei”.

 “Sacéia?”, pergunta Luisito, enquanto pega o seu celular e começa a investigar no Google. “Humm, parece que a Sacéia era uma festa pagã na Babilônia, dedicada ao deus Marduk, para festejar o início da primavera. Esta festa iniciava com o rei da Babilônia abdicando temporariamente do trono e passando a coroa para um presidiário escolhido pelo povo para exercer o poder e coletar impostos durante os cinco dias de festividades. Caramba, Nanico, tu ocupou o trono?”

- Parece que sim! Mas que tragédia vai acontecer no meu sonho?

- Não deve ter nada disso, cara. Tu ta procurando cabelo em ovo.

- Deixa de ser ignorante, Luisito, o ditado não é bem assim.

- Tá certo, mermão. Mas teu sonho só pode ser sinal de que tu tem vocação para realeza.

 Nanico, se sentindo meio ridículo por estar tão preocupado com o significado de um sonho, acaba não contando tudo ao seu amigo. Os dois resolvem então sentar-se no pátio da casa para admirar a vista esplêndida que eles têm lá do alto do Morro dos Prazeres. Enquanto as latas de cerveja vazias se amontoam pelo chão, eles seguem com os olhos o arco que a lua minguante descreve pelo céu desde que nasce lá para as bandas da Baía da Guanabara. Vez ou outra, um tremor percorre o corpo de Nanico, que então vira o rosto para a esquerda e admira a mancha de luz que irradia do Sambódromo, onde uma infinidade de pessoas trabalha incessantemente para dar os últimos retoques antes de iniciarem os desfiles das escolas de samba. 

 Por volta das três da madrugada, Nanico cai inconsciente no sono, deitado em sua cadeira espreguiçadeira. Um resto de cerveja meio morna esquecido no fundo da lata vira sobre seu colo, sem que ele se dê conta. Luisito observa a cena, e enquanto pesa os prós e os contras de acordar o amigo para que ele vá se deitar em sua própria cama, Nanico murmura dormindo “tá cheio de Exu e Pomba Gira solto por aí se alimentando das loucuras do povo durante o carnaval, cuidado ... a cabeça”. 

- Que conversa é essa? Eu não sabia que tu era pudico, mermão. Vai dormir na tua cama, vai.

 Naquela noite, todos os terreiros das proximidades trabalham a pleno vapor, aproveitando os últimos momentos antes do alvorecer de sexta-feira. A partir de amanhã, os terreiros ficarão fechados durante todo o carnaval, como parte de um acordo tácito com a Igreja católica, que vem sendo respeitado a décadas. Embalado pelo batuque e pela cerveja, Nanico dorme um sono pesado, cheio de sonhos.

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Tags: rei da babilôniajardins suspensos da babilôniacarnavalmacumbafeitiçoexuentrega das chaves da cidade

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