O que foi que Berenice me disse?
No ano anterior, nesta mesma época, ela estava se preparando para ver o desfile dos grupos carnavalescos na avenida Borges de Medeiros. Novidade recém-chegada do Rio de Janeiro, o carnaval já não se restringia mais aos clubes da cidade. Brancos e negros agora assistiam juntos as evoluções dos passistas no asfalto lá do centro da cidade, enquanto cantavam as marchinhas da moda. Sua mãe, inconsciente dos perigos que cercavam as meninas desacompanhadas naquele ambiente de perdição, tinha deixado Berenice assistir ao desfile no centro da cidade. Sozinha em meio a uma multidão de marmanjos de olhar cobiçoso, acompanhada apenas de sua melhor amiga, ela tinha se sentido adulta, importante.
Mas este ano, alertada, pelas vizinhas, dona Olímpia tinha proibido Berenice de assistir aos desfiles das escolas de samba. Ao invés disso, sua mãe lhe dera instruções de como chegar à casa da sua nova patroa. Aos 17 anos, ela acabava de arrumar o seu primeiro emprego.
Seguindo as explicações de sua mãe, Berenice desceu a ladeira, atravessou a Plínio e começou a subir a rua Auxiliadora. Ia de olhos bem abertos, observando tudo ao seu redor com temor: apesar de seu novo trabalho ser pertinho de casa, aquilo ali parecia outro mundo. Até então, ela quase nunca saía do quilombo, passando os dias inteiros em casa, ocupada com os afazeres domésticos, ou servindo cafezinho para as clientes da sua mãe. Apesar do medo, ela sabia que tudo daria certo, pois era o que a sua mãe tinha afirmado. E quando Dona Olímpia dizia alguma coisa com aquela cara estranha dela, de olho semicerrado e ar de quem escuta confidências do exu, podia acreditar que era verdade.
Dona Olímpia era a vidente mais cobiçada da Bacia do Montserrat. As madames vinham de longe para se consultar com ela e conhecer o destino que as aguardava. Valia à pena subir a ladeira de terra batida e sujar os saltos na lama que se formava ao redor das lavadeiras, que, espalhadas nas proximidades do arroio, lavavam as roupas de suas freguesas em tinas de madeira. Quando entravam na casa de Dona Olímpia, suas clientes tinham a impressão de atravessar o portal para um outro mundo. Apesar de ser um casebre de madeira com telhado de zinco, suas paredes eram decoradas por imagens de santos e, sobre a mesa coberta por um pano de cetim vermelho situada no centro da peça, uma bola de cristal anunciava aos desavisados que ali não era um lugar qualquer. Ali era o reino dos orixás.
Dias antes, tinha aparecido a sua porta uma cliente nova que morava no bairro. Tinha o ar cansado, de quem havia se tornado mãe há pouco tempo. Mas descontente com a vida sua atual, ela vinha esperançosa em busca de notícias de um futuro melhor.
- Mas como é que é que eu podia contar para ela o que eu vi nas cartas, Berenice? Cansada devido ao trabalho doméstico diário e aos cuidados com a sua filha recém-nascida, ela estava sedenta por aventuras e um pouco de romance. Mas tudo o que eu vi nas cartas foi solidão e trabalho. Na saída, enquanto ela pagava pela leitura da sorte, perguntei se ela não estaria interessada em ter ajuda na lida do lar. Falei de ti, minha filha. Disse que tu tava procurando emprego. Mas o que é isso, guria? Não faz essa cara de choro! Tu vai fazer na casa dela a mesma coisa que tu já faz aqui. Vai, vai, que a essa hora ela já está te esperando. Não tem como errar, é o único prédio da rua.
Pouco mais tarde, Berenice e Nair se olhavam curiosas pelo vão da porta entreaberta. A futura patroa reparou na garota alta e magrela, da canela fina, que usava sobre o corpo apenas um vestido fininho, inadequado para o inverno gaúcho. Com seus óculos de armação pesada, os cabelos presos em um coque e a cara séria, Nair explicou rapidamente as tarefas, e, em seguida, levou Berenice até a área de serviço, junto às vassouras e aos baldes, antes de se retirar para atender a criança que chorava a plenos pulmões desde que haviam tocado a campainha. O trabalho era simples, bastava limpar a casa. A preparação da comida e os cuidados com o bebê ficariam à cargo da Dona Nair.
Nem patroa, nem empregada eram de muitas palavras. Para acabar com o mal-estar causado pelo silêncio da casa, Berenice comprou um radinho de pilha assim que recebeu o seu primeiro salário. Dali em diante, ela passava os dias inteiros escutando música baixinho enquanto trabalhava. A tranquilidade só era interrompida quando a bebê começava a berrar por atenção, o que, invariavelmente, vinha acompanhado pelo barulho que o vizinho de baixo fazia, batendo com o cabo de vassoura no teto para dar vazão a sua ira. Bastava Dona Nair sair de casa, que Berenice ia correndo segurar a criança no colo:
- Pronto, pronto, não precisa mais chorar. Que gente estranha é essa, que deixa um bebezinho chorar até dormir só porque alguém escreveu um livro dizendo que é assim que se educa criança, hem meu pãozinho de leite? –ela dizia, abraçando o bebê junto ao peito.
Berenice tinha o coração cheio de amor represado, pronto para dar. Era ainda um tico de gente quando foi entregue à Dona Olímpia por sua mãe biológica. Esta, incapaz de conciliar sua vida noturna desregrada com o papel de mãe, escolheu a vidente para substituí-la, pois era mulher honesta e de bom coração, ainda que meio distante. Com sua fala mansa e jeito tranquilo, Berenice cresceu solitária, à sombra. Agora aos dezessete anos, ela sentia pela primeira vez como era importante na vida de alguém, e retribuiu o afeto de Inês ensinando a ela lições preciosas: que banana tem gosto de tutti frutti quando é comida inteirinha, até o fim; que bolinho de chuva só pode ser preparado em condições meteorológicas especiais, que em dia de malcriação, criança come guisadinho aguado e que música de Roberto Carlos se dança juntinho, apoiada sobre os pés de quem conduz a dança.
Quando Inês tinha 15 anos, Berenice começou a namorar sério um empregado da Comlurb, e poucos meses mais tarde, ela aceitava se casar com aquele rapaz sério e ensimesmado com quem ela vinha saindo.
- E ele é branco, Berenice? – perguntou Dona Nair, quando ela veio pedir as contas. Havia decidido parar de trabalhar como doméstica depois do seu casamento. A partir de agora ela iria finalmente cuidar da própria casa!
- Deus me livre, dona Nair. Que nojo!
Naquele dia, ela deu um abraço apertado em Inês e murmurou umas palavras de despedida em seu ouvido.
- O que foi que ela te disse, minha filha? – perguntou Nair logo após Berenice ir embora.
- Ahn, não sei, mãe. Eu fiquei tão chocada com a despedida, que nem ouvi direito. E agora, como é que vai ser? Onde a gente vai encontrar ela, quando bater a saudade? Ela sempre fez parte da família...
Nair, enciumada, fez um muxoxo e foi tratar de questões práticas. Logo mais seria a hora da janta.
Dois anos mais tarde, Berenice apareceu para apresentar seu filho recém-nascido e matar as saudades. Cheia de zelo, ela passou o bebê para os braços de Inês, enquanto anunciava com uma piscadela de olho:
- Ele se chama Maximiliam - e as duas imediatamente caíram na gargalhada diante de Nair, que não entendia nada do que se passava entre elas.
Maximiliam era o nome do galã da fotonovela predileta delas, que Inês havia guardado de recordação em meio aos clássicos da literatura. Enquanto tomavam café e competiam pela atenção do bebê, elas relembraram o tempo em que disputavam quem teria a honra de ser a primeira a ler a fotonovela publicada naquela semana e sonhar com um futuro de conto de fadas. Desde a partida de Berenice, as fotonovelas tinham perdido grande parte da sua graça. Mas quem sabe o que a vida reservava para elas? Quem dera Dona Olímpia ainda estivesse viva para contar!
À hora das despedidas, com a porta de casa quase fechada, Inês lembrou da questão que a perturbava há tanto tempo:
- Você lembra o que me disse naquele dia em que você foi embora, Berenice?
Tímida, ela brincou com a manta do bebê que carregava no colo, enquanto tomava coragem para falar.
- Quando fiz quinze anos, minha mãe colocou as cartas para mim e previu que eu teria dois filhos: uma criança branca, e outra negra. Naquele dia em que parti, eu disse que eu estava deixando a casa de vocês, mas que eu te carregaria para sempre em meu coração.
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