O Ninja e eu
Fazia muito anos que nós nos conhecíamos, desde os tempos em que frequentávamos os bailinhos da adolescência. Ele era amigo do amigo de meu amigo, famoso na escola por participar de ‘pegas’ nos fins de semana. Nas poucas vezes em participei desses eventos, nas ruas no entorno da Redenção, eu fiquei maravilhada por um mundo cheio de luz, barulho e bebida onde ele e seus amigos eram os mestres na arte de fazer cavalos de pau, derrapagens e círculos de fogo. Eram mestres também da sedução. Desde muito novo, ele era um galinha.
Quando nos reencontramos, eu já tinha me divorciado e era mãe de três filhas pequenas. Eu ainda era uma mulher muito bonita e cheia de vida, mesmo após ter dado à luz e cuidado de crianças pequenas. Com a separação, eu tinha tido de voltar a trabalhar para me sustentar. Eu era enfermeira da secretaria da saúde e tinha feito várias amigas no trabalho com quem eu saía nos fins de semana. Reencontrei ele na noite, em meio a muita cantoria e cerveja. Ela era um homem que exalava vitalidade por todos os poros e que guardava um mistério no fundo do olhar. De imediato, eu me senti atraída. Mas sua fama continuava a mesma. Diziam, à boca pequena, que ele tinha engravidado várias das suas ex-namoradas e que todas tinham decidido abortar. Apesar do disse-me-disse, em pouco tempo começamos a namorar e éramos uma presença constante em todos os eventos. Gostávamos de fazer as mesmas coisas, viajávamos muito e fazíamos sucesso em todos os grupos sociais.
De dia, ele trabalhava no posto de gasolina de sua família, e nas horas livres continuava correndo de carro. Ele agora tinha abandonado os ‘pegas’ nas ruas e migrara com todos os seus amigos da velha guarda para o autódromo de Tarumã, em Viamão. Quando em 1976, ocorreu a crise do petróleo, as corridas acabaram e o Tarumã fechou. Pouco depois, ele entrou em depressão, não via mais graça na vida. Já namorávamos há alguns meses, quando um dia ele me perguntou se eu queria ter mais filhos. O sonho dele era ser pai, e o fato de que todas as suas ex-namoradas que engravidaram tinham abortado deixava ele super frustrado. Me lembro bem daquele momento. Quando ele me disse que eu era a mulher da vida dele, eu não soube o que responder. Fiquei tão emocionada por aquela demonstração inesperada de amor! Não pensava que nossa relação fosse assim tão importante para ele.
Fui para casa confusa. Eu gostava dele. Ele era excelente companhia, sempre de bom humor, o sexo era excelente e nos divertíamos muito juntos. Mas eu não havia perdido a cabeça, ela continuava bem apoiada sobre meus ombros. Eu sabia que uma vez galinha, sempre galinha. E tinha certeza de que eu não suportaria ser traída. Uma nova separação aos 40 e poucos anos e um filho pequeno para cuidar sozinha não eram uma perspectiva agradável. Contudo, eu sabia que ele seria sensível aos meus argumentos, pois ele estava louco por mim. Tudo era questão de dar uma resposta com jeito.
Na próxima vez em que saímos juntos, eu lhe disse que gostaria de falar em particular com ele. Tínhamos sido convidados para um almoço de domingo pela família dele, e aguardávamos o almoço ficar pronto em meio ao barulho e confusão de uma típica família italiana. Quando ele me viu assim ansiosa, me abraçou animado e me levou para conversar na varanda da casa. Lá, expliquei da maneira mais branda possível que eu não me sentia em condições de ter mais um filho. Meu desejo agora era aproveitar a vida da melhor maneira possível e, se o dinheiro desse, viajar pelo mundo em boa companhia. Voltar à fase das fraldas e da mamadeira era algo inimaginável para mim.
Como não era nada disso que ele imaginava escutar de mim, sua reação foi brutal. Me respondeu à queima-roupa que então tinha chegado a hora de nos separarmos. Disse que era uma pena que eu pensasse assim, pois ele tinha certeza de que nossos filhos seriam tão lindos quanto os filhos que ele sempre sonhara ter. “O quê?”, pensei comigo mesma, então ele não era apaixonado por mim, mas sim pelos meus genes?”.
Meses se passaram até que eu voltei a ter notícias dele: ele tinha engravidado uma nova garota. Mas dessa vez, quando a família dele soube, ele recebeu um ultimato e foi convencido a se casar. Apesar de ter sido um casamento sem amor, eu soube que ele foi um bom pai para as meninas e, na medida do possível, fiel a sua esposa. Para ela, no entanto, que nunca tinha sido apaixonada por ele, aquele era um casamento de interesse. Pouco tempo após o nascimento da sua segunda filha, o casamento tinha esfriado completamente. Soube que, eventualmente, ela tinha casos, talvez como uma forma de vingança pelo desinteresse dele.
Em 1984, quando o autódromo de Tarumã reabriu, ele, que agora estava com mais de 40 anos de idade, voltou a correr. Todo fim de semana ele participava das ‘12h de Tarumã’, que davam largada à meia-noite de sábado e tinham a bandeirada final ao meio-dia de domingo. Segundo amigos em comum, ele corria sem temer pela própria vida. Era famoso pela velocidade com que entrava na curva da Tala-Larga, um cotovelo em descida, que mandava muito piloto para o além. Isso lhe valeu o codinome ‘Ninja’.
Outro dia, quando o encontrei no shopping pela primeira vez depois de todos estes anos, eu levei um susto. Ele parecia uma casca vazia, sua vitalidade tinha se perdido nas curvas do Tarumã. Instintivamente, eu fiz que não o tinha visto e convidei minha filha mais velha para irmos tomar sorvete. Decidi que tomaria o sorvete de chocolate belga, o seu preferido, em honra aos nossos bons tempos.