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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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O jardineiro talentoso

 


Acabo de fazer uma viajem no tempo. Ida e volta à minha infância em uma fração de segundo. Ainda sinto meus pés levemente suspensos no ar, minha cabeça desnorteada. A máquina do tempo? Bem, não foi uma viagem em uma máquina do tempo. Na verdade, viajei em um aroma de flor. Não sei nem bem te dizer de qual flor! Sigo examinando curiosa o jardim que fica 
à minha esquerda,na entrada do meu prédio, e sinto novamente o cheiro levemente ácido e morno. Cheiro de jardim regado de manhãzinha e que agora é invadido pelo sol de fim de primavera. Esse cheiro me lembra o jardim encantado de minha infância. 

 

Aquele era um jardim feito para o encantamento dos cinco sentidos. Os vizinhos e os passantes se detinham embevecidos por alguns minutos na calçada, enquanto olhavam por cima do muro baixo de uma casa que não tinha nada de especial. Afora o jardim. Os pássaros e as cigarras da rua conheciam bem aquele endereço. Era a casa de meu tio, personalidade controversa, mas um jardineiro de mão cheia.

 

Tenho uma memória, que mais parece um flash, luminosa e efêmera. Contemplo a vista da janela do quarto de meus tios. Acabo de acordar e meu primeiro desejo é olhar o jardim neste belíssimo dia de verão. As janelas da casa já estão todas abertas e o ar circula, agitando as calças do meu pijama. Dentro de casa ainda está fresco. Mas no jardim, as abelhas zumbem atarefadas sobre os canteiros de bocas-de-leão e Alyssum, todos em flor, enquanto o canteiro de rabos de galo, permanece silencioso e imponente como uma ninhada de pavões tímidos. Ainda é cedo, e as onze-horas acanhadas permanecem fechadas. Mais tarde, quando as cigarras anunciarem a chegada dos novos tempos, elas já estarão abertas, se exibindo ao sol.

 

Hoje é sábado. Vim passar o fim de semana na casa de meus tios para aproveitar melhor a companhia de meus primos. Mas uma das minhas distrações prediletas é preparar as sementeiras. Devagar vou aprendendo todas as fases: desde reparar os caixotes de madeira que já existem, até enchê-los com terra, escolher as sementes de flores que vamos plantar, enfiar o dedo guloso na terra para fazer um buraquinho e nele colocar as sementes, recobri-las de terra e aguar. Depois só resta esperar e ir acompanhando passo-a-passo o desenvolvimento das mudinhas, até o dia em que finalmente poderemos transplantá-las para os canteiros. O meu olhar, lá de cima da janela, é um olhar orgulhoso, de quem ajudou a criar esta obra de arte.

 

Minha memória flash se extingue no ar e volto minha atenção para o jardim à minha frente, cópia fajuta daquele da minha infância. Onde estão todas aquelas flores, as abelhas e as cigarras? Os filhos de meus vizinhos, que passam ao meu lado com os seus hoverboards e patinetes de última geração nas mãos, jamais ajudarão a plantar jardins assim tão lindos como os de meu tio. Tenho pena deles. Um jardim é fonte perpétua de surpresas e delícias, ao contrário de um hoverboard. 

 

Essa memória me lembra da minha reação de espanto nos primeiros meses em que morei no Rio de Janeiro. Havia muitos jardins e alguns canteiros de rua bem cuidados, mas quase não havia flores. Somente folhagens luxuriantes. As únicas cores dos jardins se limitavam aos vasos de orquídeas abandonados na lixeira do prédio pelos moradores quando as flores começavam a murchar. Os vasos de plástico eram então jogados fora pelos porteiros, e as raízes e folhas das orquídeas eram amarradas aos troncos de palmeiras plantadas nos jardins. Cada nova floração destas orquídeas de rescaldo era uma festa para os olhos e motivo de eterna concorrência entre os porteiros pelo jardim mais bonito da rua. 

 

O dia se arrasta, e eu sigo perdida em memórias provocadas por um perfume de flor que há muito desapareceu. Me dou conta de que faz tempo desde a última vez em que enfeitei a mesa da sala com um vaso de flores frescas. Decido então passar no florista e escolho um belo ramalhete de flores do campo que agora arranjo em um vaso transparente de vidro sobre a mesa. Estas flores são para você, jardineiro de minha infância. Que Deus o tenha. Olha, lá vem a chuva que as cigarras anunciavam mais cedo!

 

 

 

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Tags: jardimfloresmemoriasinfancia

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