O grito
Acho que sei quando foi que tudo começou, Esther. Naquele tempo eu e Momo andávamos sempre juntas, ela era a minha melhor amiga. Saíamos frequentemente com nossos amigos nos fins de semana e viajávamos para as praias do sudeste e nordeste nos feriados. A gente era tão próxima, que durante um tempo eu tive a impressão de saber o que era ter uma irmã.
Me lembro de uma conversa que tivemos quando fomos passar o feriado de Ano Novo na Ilha Grande. Tínhamos acabado de chegar, largar as malas na pousada e estávamos estendendo nossas cangas na Praia da Júlia, a mais próxima da Vila de Abraão. Foi neste dia que ela me falou pela primeira vez do seu namorado. Como era possível que ela tivesse um namorado e eu não o conhecesse? Nas semanas seguintes, ela voltou a falar dele várias vezes. Eu fui achando aquilo cada vez mais estranho. Será que ele era apenas uma transa? Mas se fosse assim, não seria namorado, não é mesmo? Comecei a considerar aquelas conversas como se fossem uma esquisitice dela, dessas a que todo mundo tem direito, tipo coisa de mulher, que não tem coragem de confessar à amiga que está a muito tempo sem namorado.
Poucos meses mais tarde, ela conheceria Francisco e sua vida passaria a girar em torno dos problemas psiquiátricos da irmã dele. Quando nos encontrávamos, ela passava horas descrevendo as crises da cunhada, que tinha obesidade mórbida e necessitava de remédios fortíssimos para controlar suas compulsões. Quando o namoro com Xico terminou, ela se isolou, não queria mais sair de casa, nem receber visitas. Passamos a nos comunicar apenas por telefone. Em uma destas conversas ela me contou que o seu empregador, dono da Universidade onde ela trabalhava, havia lhe pedido que passasse a se ocupar exclusivamente da saúde de seu filho, um professor universitário de 40 e poucos anos.
Homem rico, culto, de boa aparência, sedutor, que não era gay: seu novo paciente era um fenômeno da natureza. Ela fez o que qualquer mulher no lugar dela faria, se apaixonou. Mas o detalhe que está faltando te contar é que ele era do tipo que consome drogas pesadas. Por isso precisava de cuidados médicos. Seu pai tinha confinado ele em casa, para fazer um tratamento de desintoxicação, e contratara um enfermeiro e uma médica exclusivos a seu serviço. Não demorou muito para que ela descobrisse que o enfermeiro traficava drogas para o professor, e ela decidisse cuidar sozinha de seu paciente.
Com o tratamento intensivo e longe das drogas, o paciente começou a melhorar e logo poderia reassumir a sua vida. Porém, passadas algumas semanas, ela me ligou em estado de choque. Precisava de uma amiga para desabafar. Seu paciente havia escapado da vigilância e ido a uma sauna. Lá, incapaz de consumar o ato sexual, ele havia descontado sua frustração sobre a garota de programa, dando uma surra nela. Todavia os gritos dela tinham chamado a atenção dos seguranças da sauna, que resolveram rapidamente o problema, dando um soco com as duas mãos nas laterais do crânio do professor. Sentindo fortes dores de cabeça, mas sem quaisquer marcas no corpo que justificassem uma queixa na polícia, ele foi para casa, tomou um banho e dormiu. E nunca mais acordou. Causa mortis: concussão.
A partir daí o estado de Momo degenerou rapidamente. Ela havia se envolvido demais com o seu paciente, e a morte dele tinha sido muito traumática. Apesar dos inúmeros convites para irmos juntas ao cinema ou fazer um lanche, eu nunca mais tinha conseguido vê-la. Até que um dia, ela finalmente aceitou minha proposta: ela queria minha companhia para visitar um amigo, que também estava enfrentando problemas. Quando chegamos à casa dele, eu finalmente descobri o que se passava com ela. A conversa deles era a de dois dependentes químicos, que por serem médicos, tem acesso fácil a todos os psicotrópicos que desejam. Fiquei ali, estática, escutando eles descreverem entre risos todos os seus sintomas: as compulsões, os estados de ausência induzidos pelos remédios, os pensamentos obsessivos, a dificuldade de sair de casa, as fobias, as noites negras...
Desde então, nos encontramos apenas mais uma vez. Eu inventei que precisava de uma receita de antibiótico e passaria na casa dela para pegá-la. Quando ela me abriu a porta, eu vi um rapaz que saía do banho com uma toalha envolta na cintura e remexia na sua mala em busca de uma roupa para vestir. Pelo menos ela estava acompanhada de alguém... Soube mais tarde, por você, que ela tinha se tornado muito próxima de um casal de irmãos. Órfãos. Sua vida atualmente girava em torno deles dois, e, juntos, eles formavam um núcleo familiar. Este rapaz que eu vi seria um deles?
Essa notícia que você acaba de me dar, Esther, eu mal posso acreditar... De repente me dou conta de que ela passou um longo tempo gritando por ajuda, mas o que chegava aos meus ouvidos não passava de lamúrias. O que eu deveria ter feito para evitar que isso acontecesse?
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