O dia em que fui à festa de aniversário do avô do meu tataravô (Viagem no Tempo, cap. 1)
Eu ontem recebi um e-mail do site FamilySearch. Nele eu era avisada de que hoje é o dia do aniversário do avô do meu tataravô. Que emoção! Na mesma hora me lembrei do seu ar sisudo na foto utilizada em minha árvore genealógica. Um homem impressionante pela sua estatura, pela sua barba branca muito bem aparada e pelo seu ar de proprietário orgulhoso nas fotos em posa muito ereto ao lado de uma belíssima mulher mais jovem, sua esposa. Giro amorosamente o solitário de diamantes em torno do meu dedo. Esse solitário, com que um dia ele presenteou sua mulher, veio sendo repassado de geração em geração até ser entregue a mim pela minha avó como presente de formatura.
Esse anel de ouro meio alaranjado, feito de uma liga que já não se usa hoje em dia, e ostentando um diamante de lapidação antiga, já não tem muito valor comercial, mais vale como recordação. Uma belíssima recordação! Eu adoraria poder lhe agradecer pessoalmente por este presente que ele involuntariamente me deu. Na mensagem que recebi, o FamilySearch me enviou um link para compartilhar com meus conhecidos das redes sociais a importância deste dia, mas, se eles não ligam para o meu aniversário, por que dariam importância para o aniversário do avô do meu tataravô? “Deve haver jeito melhor de lhe agradecer...”.
Enquanto preparo meu café da manhã, leio em uma tela virtual que flutua à frente do balcão da cozinha as notícias publicadas hoje cedo na internet. O nível de radiação UV está elevado, vários bairros de Porto Alegre estão parcialmente recobertos pelas águas do Guaíba devido aos efeitos combinados do super El Niño deste ano e da elevação do nível do mar, pragas de insetos se formaram devido à enchente e aumentam o perigo de uma nova epidemia de Dengue e Chikungunya. “Nada de muito anormal, mesmo assim acho que o ideal seria não sair às ruas hoje. Quem sabe vou passear no shopping center?”
Me cubro toda de protetor solar e pego um UBERfloat na porta de meu condomínio. O motorista de hoje é mais gentil e me pergunta a que altura acima da superfície das águas eu quero me deslocar. “Acima dos prédios, por favor”, respondo a ele. A maioria dos motoristas finge ignorar que nós, passageiros, temos esse direito de escolha. Como se deslocar sobre um colchão de ar pouco espesso junto à superfície das águas gasta menos combustível, eles deixam o hovercraft no modo default. Sigo veloz pelas ruas de Porto Alegre, invejando os moradores dos apartamentos de cobertura, longe destas águas paradas e malcheirosas, e os proprietários de barcos, que aproveitam este belo dia de fim-de-semana para passear pelos afluentes do Guaíba.
Enfim chego às docas do shopping center, onde o meu uber estaciona na superfície das águas e fica tranquilamente oscilando ao sabor das marolas que lambem o cais. “O shopping hoje deve estar cheio”, comento com o motorista, pois nestes dias de alta radiação muita gente vem fazer home office sob a cúpula de vidro com blindagem UV. Começo a passear pelo shopping pelo andar térreo e logo reparo que lá no fundo tem um grupo de pessoas fazendo um zum-zum-zum danado. Me aproximo curiosa e vejo no centro deste grupo um homem vestido de trapos, com um lenço vermelho amarrado no pescoço e munido de um pau com uma faca enferrujada espetada na ponta, à semelhança de uma lança. Ele vem com uma ferida superficial no peito, coberta por uma crosta de sangue seco. “Aqueles chimangos desgraçados que eram aliados do Florêncio da Cunha hoje pagaram os seus pecados. Vinguei meus antepassados. Se eu tivesse mais tempo, mudava o curso da história”, ele grita emocionado levantando o punho fechado no ar. E sai rodeado por um grupo de enfermeiros todos trajados de branco, que se apressam em sedá-lo.
No centro da confusão, eu vejo uma máquina reluzente em forma de ovo, com um escudo acrílico transparente que se fecha lentamente na parte frontal. No seu interior há um assento pouco espaçoso defronte um painel cheio de controles eletrônicos. No encosto, luzes azuis piscam sem parar. De pé ao seu lado, a vendedora dá explicações à massa curiosa sobre o funcionamento da máquina do tempo, modelo Egg, que acaba de ser instalada no corredor central desta ala do shopping. “Devido às dimensões internas reduzidas e à baixa duração das viagens no tempo, esta máquina é perfeita para quem quer viajar no tempo sem gastar muito. Uma experiência de 4h de duração que você nunca vai esquecer”.
Desde que essas máquinas foram lançadas, as pessoas canalizaram suas energias negativas para as disputas do passado. Agora nas redes sociais não se discute mais por política, futebol ou economia, todo mundo culpa os antepassados pelo caos ecológico e social que se instaurou na década de 2040, ou seus familiares distantes pelas heranças irrisórias. Está na moda viajar no tempo para tentar mudar o curso da história. Mas isto, os cientistas insistem que deve ser evitado.
Meu objetivo atual está longe de ser tão grandioso. Eu só queria agradecer o avô do meu tataravô pelo belo anel que herdei e aproveitar para conhecer mais de perto ele e sua esposa, por quem me encantei enquanto fazia as pesquisas para montar a minha árvore genealógica. “Quem sabe hoje não seria o dia ideal para visitar meus antepassados?”, penso alto, enquanto me imagino sentada na bela sala de estar deles, toda feita de móveis de jacarandá torneados, que hoje compõem a sala de estar na fazenda de minha avó. Já sinto o gostinho de doce de ovos moles e de outras guloseimas em minha boca, enquanto pago por esta aventura com o meu cartão de crédito.
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