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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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O closet de minha bisavó

 

Segunda-feira é dia de limpar a casa. Dispensar a faxineira foi a primeira coisa que decidi fazer nesta nova fase da minha vida. Às vezes me arrependo disto, mas este sentimento passa rápido quando me lembro da sensação de invasão de privacidade que antes me atormentava nos dias de faxina. Para adotar um estilo de vida mais autossuficiente, tive de descartar muitas coisas que antes entulhavam minha casa e exigiam manutenção. Foram-se os objetos, ficaram as memórias.

 Enquanto minha mente divaga sobre essas banalidades, me vem a imagem de minha tia bisavó. Ela morava só em um apartamentinho minúsculo no centro de Porto Alegre. Mesmo sem ter uma faxineira, seu apartamento estava sempre meticulosamente limpo e bem arrumado, ao contrário do meu. As embalagens de todos os objetos comprados ou presenteados eram desamassadas e livres de fita adesiva antes de serem estocadas no closet. Separadas por categoria - sacolas plásticas, sacolas de papel, papéis de embrulho e fitas – elas aguardavam o dia em que seriam novamente utilizadas. Tendo vivenciado os períodos de escassez que caracterizaram as duas guerras mundiais, nada para ela era inútil ou descartável.

 Seu closet era uma verdadeira mina do tesouro, onde qualquer um munido de afinco e paciência poderia encontrar tudo o que necessitasse, não apenas embalagens. Depois da sua morte, encontramos lá dentro dezenas de caderninhos onde estavam registradas as datas de todos os fatos importantes da vida familiar, além das relações de gastos diários de toda uma vida e de suas fontes de rendas. Nos seus inúmeros álbuns de fotos, encontramos, imortalizados, os personagens familiares das incontáveis histórias que ela havia narrado durante as tardes em que vinha nos visitar. Com o mesmo afinco com que triava e reciclava as embalagens, ela registrava e recontava os detalhes da vida de cada um desses antepassados. Graças aos seus dons de contadora de histórias, não havia quem não se tornasse interessante aos nossos olhos: todos eram multifacetados e tinham vivido vidas atormentadas, porém não desprovidas de glamour.

 

Graças às histórias que ela nos contava, hoje compreendo que as experiências vividas pelos meus ancestrais influenciaram em parte as decisões que tomei em minha vida. Me dou conta de que suas aptidões e interesses compõem algumas das inúmeras facetas da minha personalidade. Mais do que anéis ou bens, a herança mais importante que recebi destes antepassados está gravada em meu corpo e alma. E eu, o que deixarei de importante para o futuro neste mundo onde quase tudo é descartável? O desejo tardio de contar histórias que se tornou tão forte em mim nos últimos tempos faz parte deste processo hereditário?

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Tags: contadora de históriasgenéticahereditariedadedons

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