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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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O anjo da guarda que não sabia ler pensamentos

porteiro bebe chimarrão, vestido à vontade em frente ao prédio, enquanto seu anjo da guarda lhe acena com bilhetes de loteria premiados

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A vida enfim voltou ao seu eixo após a passagem do ciclone em Porto Alegre. Nesta sexta-feira, passada a tormenta, fui visitar minha mãe para saber se tudo ia bem, e fui recebida na portaria pelo seu Antônio. Sentado em um banco com as pernas espichadas para a frente e com uma cuia de chimarrão nas mãos, ele me olhou com o ar tranquilo e à vontade de quem recebe visitas sentado em sua sala de estar. 

- Tudo bem, seu Antônio? Como vão as coisas? 

- Ah, dona Vera, agora tudo está bem. Veio ver sua mãe? Ela acabou de sair! Disse que ia no super... 

- De novo? Mas eu a levei ao mercado ontem!

- Deixa ela, dona. É um bom exercício para a saúde. Tem de caminhar todo dia um pouquinho.

- Bom, então vamos aproveitar esse tempinho para continuar nossa conversa do outro dia? O senhor ia me mostrar suas artes...

- Ah, é... Mas a síndica me pediu para não fazer isso aqui na portaria. Agora não sei como vou fazer para ganhar uns trocados extras. Se não conseguir vender minhas artes, vou ter de apelar outra vez para o meu anjo da guarda!

- Como assim, seu Antônio?

- Ih, dessa história, a senhora vai gostar. 

 

“Eu ainda era novo e estava trabalhando de porteiro pela primeira vez em minha vida. Eu ganhava somente um salário-mínimo, o que mal dava para pagar as contas. Teve um dia que eu fui ao banco retirar um dinheirinho, mas não tinha mais nada na conta. Eu fiquei sem saber como ia fazer para comprar o pão e o leite que eu tinha de levar para casa! Resolvi então ir para casa a pé, e usar o dinheiro da passagem de ônibus para comprar o pão.” 

 “Eu ia caminhando pela rua, rezando para o meu anjo da guarda me ajudar, quando vi, num cantinho da calçada, o que pareciam ser três talões de cheques caídos no chão. Me aproximei curioso e descobri que, na verdade, eles eram três talões de vale-refeição. Cada vale valia na época em torno de R$24. Eu rapidamente fiz as contas e vi que ali tinha muito dinheiro. Olhei para um lado e para o outro, e, como não havia ninguém para quem eu pudesse devolver os talões, eu resolvi ficar com eles!”

 “Naquele dia, eu cheguei em casa cheio de sacolas de supermercado. Ali nas sacolas tinha de tudo. Até espeto e carne para churrasco eu comprei. Quando minha mulher viu tudo aquilo, ela me perguntou “Que é isso, homem? Assaltou um banco?” No fim de semana seguinte fizemos uma churrascada e convidamos toda a família. Foi uma festa enquanto os vales duraram!”

 "Passado um tempo, a época das vacas magras tinha voltado. A coisa estava difícil outra vez. Eu tinha ido ao centro resolver uns problemas e aproveitei para almoçar no mercado municipal. Naquele tempo o centro da cidade era movimentado, não era este abandono de hoje em dia. Tinha gente para todo lado, inclusive muitos meninos de rua. O mercado também estava cheio de gente, com muito cheiro de comida boa no ar."

 "Como eu levava pouco dinheiro no bolso, tive de me contentar apenas com um pequeno lanche. Enquanto aguardava fritarem o pastel, eu me encostei no balcão da lanchonete para beber o caldo de cana. Ali, de pé, eu via todo mundo comodamente sentado na mesa, em frente a um prato cheio de comida e um copo de chopp, enquanto eu, espremido em meio aos outros fregueses do balcão, só tinha um copo de caldo aguado na mão. Logo depois de mim, chegou um gauchão da fronteira, gordo, barrigudo, vestindo uma bombacha. Ele era o típico homem do interior: simpático e falante. Logo após encomendar uma infinidade de pastéis, ele se pôs a conversar comigo enquanto aguardava a fritura ficar pronta. A conversa dele era boa, eu fui ficando animadinho outra vez. Reparei que, enquanto conversava comigo, ele dava uns tapinhas em um bolso da bombacha, onde tinha algo muito volumoso guardado.”

 “Quando os pastéis dele chegaram, fumegantes, ele se alvoroçou procurando os guardanapos e o molho de pimenta. Foi nessa hora que um grupo de trombadinhas enfiou a mão no bolso dele e sacou uns bolos de notas enroladas e presos com atilho de borracha. Mas o homem foi mais rápido, e agarrou os guris pelo cangote. Ele chacoalhava os garotos no ar, enquanto repreendia eles pela má conduta. Quando os guris viram que não iam se safar tão fácil, eles lançaram os bolos de notas para o alto. Os atilhos se romperam, e as notas se espalharam para todos os lados. Naquela hora, apareceu gente correndo de todos os cantos, tentando recolher as notas do homem. Com a confusão, os garotos se soltaram e saíram correndo em direção à rua da Praia, com o homem correndo atrás dele.”

 “Eu tinha conseguido pegar algumas notas, com a intenção de devolver elas ao dono. Mas como o homem desapareceu lá para as bandas da rua da Praia, eu fiquei sem saber o que fazer. Olhei para um lado, olhei para o outro, e acabei enfiando as notas no bolso, com medo de ser visto por algum conhecido. Foi só quando cheguei em casa, que eu contei o dinheiro. Tinha mais de R$500! Fizemos uma nova festa lá em casa.  Mas a senhora conhece aquela música, né? Dinheiro na mão é vendaval, é vendaval, na vida de um sonhador ... e mais uma vez, a alegria durou pouco.”

 “Tempos depois, eu estava caminhando com minha mulher lá pelo centro da cidade. Quando passamos pela vitrine de uma loja de eletrodomésticos, ela viu o último lançamento da Brastemp: uma máquina de lavar roupas com tampa de vidro. Dava para ver a roupa girando lá dentro enquanto era lavada. Minha mulher ficou quase doida, só faltava abraçar a máquina. ‘Que coisa linda, pena que eu nunca vou ter uma destas nesta vida!’, ela falou. ‘Tenha fé, mulher! Nunca se sabe o que a vida pode nos trazer’, eu respondi para ela, segurando, entre os dedos polegar e o indicador, o santinho pendurado no meu pescoço, presente de minha madrinha.”

 “Eu sempre tive o costume de jogar na LOTO. Naquela época, eu tinha uma lista de números da sorte, escritos em um papelzinho colado na parede lá de casa. Pois não é que na semana seguinte eu descobri, quando fui conferir o resultado da LOTO, que eu tinha acertado na QUADRA! Quando eu vi o resultado, eu pensei que estava sonhando. Peguei o bilhete vencedor e os meus documentos, e fui à agência da Caixa Econômica conferir se era verdade. Chegando lá, eu quis receber tudo na hora, em dinheiro vivo, quéxi. O dinheiro que eu trouxe para casa era tanto, que cobria toda a mesa da sala de jantar! Quando eu cheguei na loja de eletrodomésticos dois dias mais tarde, vestido de bermuda e chinelo de dedo como sempre, o vendedor nem me deu bola. Na certa, ele achou que eu não tinha cacife para comprar a máquina. Mas eu comprei a máquina de lavar roupas à vista, e ainda dei um agrado para o vendedor!”

 - Seu Antônio, esse seu anjo da guarda é poderoso! Me ensina a sua reza?

- Ele é poderoso, sim senhora. Mas também tem de saber falar com ele. Ele não sabe ler pensamentos, então para pedir ajuda tem de ser em alto e bom som. E com fé. Mas a senhora precisa disso, dona?

- Todo mundo precisa de ajuda em alguma coisa, seu Antônio. Todo mundo.

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Tags: anjo da guardaporteirobilhete premiadodinheiro caído do céu

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