O amor e o sonho não têm idade
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- O senhor está bem? Precisa de ajuda?
- Ele está meio confuso coitado. Foi culpa do ciclista que quase o atropelou.
- Ih ele está sangrando muito, é melhor leva-lo a um Pronto Socorro.
- O senhor está acompanhado? Ou tem alguém que a gente possa chamar para vir lhe fazer companhia?
- Não, não, está tudo bem comigo, obrigado!
- O senhor consegue se levantar? Apoia aqui, upa. Agora vamos nos sentar ali na amurada até o senhor se sentir melhor.
- Já estou me sentindo melhor agora que ficou somente a senhora aqui comigo. Aquele monte de gente ao meu redor estava me deixando nervoso.
- A bicicleta bateu no senhor?
- Não, não, eu perdi o equilíbrio com o susto, foi só isso.
- Mas o seu joelho está feio. O senhor aguarda um pouquinho aqui sentado enquanto eu vou na farmácia do outro lado da rua para comprar material para fazer um curativo?
- Não precisa, eu tenho tudo em casa. Vamos apenas ficar aqui um pouquinho mais , enquanto eu me acalmo do susto.
- Tá bonito o dia, não é? Depois de uma semana de chuva, eu não aguentava mais ficar em casa. Quando acordei, e vi que hoje fazia sol, resolvi dar uma caminhada na Urca. Olha lá que bonito, o sol refletindo nos mastros e nos cascos dos barcos ancorados ali no Iate Clube. Isso aqui é um cantinho de paraíso. O senhor sabia que tem dias que eu vejo golfinhos seguindo os barcos de pesca que vem voltando para o Quadrado da Urca? Sempre sonhei em viver aqui. E o senhor? Também gosta de caminhar na Urca?
- Gosto muito, eu venho todo domingo. Eu moro aqui bem pertinho, dá para ir para minha casa a pé.
- Falando nisso, está na hora de fazer seu curativo. Tem de lavar a ferida para não infeccionar. Vou chamar um taxi para levar o senhor em casa.
- Não precisa, eu dou conta de ir caminhando. Você se importa de me acompanhar?
- Claro que não! Vamos.
- Por favor não repare a bagunça. Eu estou dormindo na sala desde que a minha última companheira me deixou. Desde então, eu nunca mais consegui dormir na nossa cama de casal...
- Não se preocupe, seu Antônio. Onde está o material para fazer o curativo? No armarinho do banheiro? Fique aqui sentadinho e deixe que eu pego tudo. Pronto, pronto. Vamos lavar esta ferida, que ficou cheia de areia.
- A senhora é casada?
- Me chame de Vera. Sou casada não.
- Como pode uma coisa dessas? Uma moça tão bonita!
- Coisas da vida, seu Antônio. Mas veja só, seu curativo já está pronto. Agora o senhor deve limpar a ferida e passar um antibiótico todo dia, para que cicatrize direitinho.
- Muito obrigada, a senhora é um anjo. Aceita um copo d’água?
- Obrigada, seu Antônio. Eu estava aqui olhando a vista do seu apartamento, que coisa mais linda! Dá para ver a baía toda, até mesmo Niterói.
- Esse apartamento é minúsculo, mas quando eu me sento aqui a admirar a vista, eu me relembro dos tempos em que eu era mais jovem e participava de campeonatos de barco de velocidade offshore. Na mesma hora me sinto feliz. Eu tinha uma lancha Intermarine, com cabine e tudo mais. Aquele barco era a minha vida. Mais de uma vez eu fui campeão de corridas. Olhe aqui nestes recortes de jornal que eu mandei enquadrar, sou eu na minha lancha. Olha que belezura!
- E o que aconteceu, seu Antônio. Porque parou de correr de lancha?
- Me chame de Tony, por favor. Durante uma competição em que eu estava fazendo a travessia Santos - Rio de Janeiro, a lancha passou por uma rede de pesca abandonada em alto mar. A hélice do motor enroscou na rede e a lancha capotou no ar. E fiquei quatro dias internado na UTI, entre a vida e a morte.
- Depois disso o senhor nunca mais pilotou sua lancha?
- Nunca mais. Meus filhos tiveram que vende-la para poder pagar a conta do hospital. Eu preferia que eles tivessem vendido o meu apartamento, mas como eles tinham raiva da lancha, eles a passaram nos cobres. Viviam dizendo que corrida de lancha era coisa para homem jovem, que eu já estava na idade de me aquietar. Venderam ela por uma ninharia...
- Pelo menos o senhor parece ter se recuperado muito bem do acidente.
- Ah, é que eu fui muito bem tratado. Quando eu saí do hospital, mal podia me mexer. O médico disse aos meus filhos que eu dificilmente voltaria a andar. Daí eles e minha ex-mulher resolveram me deixaram morando lá no sítio, aos cuidados do caseiro e da sua filha. Me aposentei por invalidez e passei a viver uma vida simples.
Como eu era médico ortopedista, tinha algum conhecimento dos movimentos que eu deveria fazer para estimular a minha musculatura. Assim, eu comecei a me tratar por conta própria. Eu passava os dias inteiros deitados na cama fazendo exercícios sozinho, enquanto me distraía olhando pela janela. Eu tinha pedido ao caseiro que colocasse uns calços nos pés da cama para que ela ficasse na altura da janela e eu pudesse aproveitar melhor a vista. E a vista era bonita, ah como era!
Eu sempre fui obstinado, quando metia uma coisa na cabeça, nada me tirava do meu prumo. Assim, de tanto me exercitar, eu fui recuperando os movimentos. Enquanto isso, eu via a filha do caseiro passando de um lado para o outro, vira e mexe ela me dava um sorrisinho. Como a Ritinha era linda! Eu passava horas distraído na minha fisioterapia, olhando aquela menina trabalhar. Ela alimentava as galinhas, lavava a roupa, colhia os legumes na horta, cozinhava, remendava minha roupa e ainda cantava o tempo todo.
Depois de um tempo, a Ritinha começou a me ajudar nos exercícios mais difíceis. A dois fica tudo mais fácil, não é mesmo? Três anos após o acidente, graças à dedicação dela e ao meu esforço, eu já tinha recuperado grande parte dos movimentos. Pouco depois, descobrimos que ela estava grávida e resolvemos casar. Desta forma, aos 58 anos, após quase ter morrido devido a um acidente de lancha, eu iniciava uma vida nova. Isto causou profundo desgosto em minha ex-mulher e meus filhos. Eles ficaram revoltados com o fato de eu resolver casar com uma moça 40 anos mais jovem que eu. Disseram que eu não tinha noção do ridículo. Que em pouco tempo eu arrumaria um par de chifres!
Eu e Ritinha fomos morar no Rio de Janeiro e, logo que nosso filho começou a frequentar a escolinha, ela pôde voltar a estudar. A Rita rapidamente concluiu o supletivo e entrou na faculdade. Após me ajudar na minha reabilitação, ela descobriu sua vocação para a fisioterapia. Ela tinha uma capacidade incrível de aprender. Após uns poucos anos morando no Rio, ela já parecia outra mulher: tinha aprendido a se vestir, sabia se portar, sabia falar corretamente e tinha adquirido traquejo social no convívio com os seus colegas de faculdade e com os meus antigos amigos do trabalho. Eu estava maravilhado com a minha nova família!
Meus filhos adultos continuavam a me rogar pragas, ainda mais agora que Rita tinha se tornado um mulherão. Eles faziam uma cena toda vez que eu dava algum presente mais caro ao meu filho pequeno. Além disso, as festas de família tinham se tornado um suplício. Ela vivia sendo acusada de interesseira e de sonsa. Mas Rita se portava sempre com muita dignidade, e ignorava toda vez que lançavam farpas na sua direção. Tudo aquilo me deixava muito magoado, pois ninguém parecia se preocupar com a minha felicidade.
Meu filho já estava com dez anos de idade, quando ela começou a sair fà noite com a sua turma de colegas de faculdade. Eles iam aos bares e a shows. No início eu ainda quis acompanhá-la, mas eu me sentia muito deslocado no meio daquele pessoal mais jovem. Em pouco tempo ela passou a sair sozinha com seus novos amigos. Ela agora era uma mulher no seu apogeu. Era difícil resistir ao seu charme. A simplicidade de uma menina criada na roça, em meio à natureza, fazia parte de seu encanto, que arrebatava os seus colegas e professores.
Dois anos depois ela me deixou. Foi viver com um colega por quem estava perdidamente apaixonada. Eu nem tenho como condená-la por isso. Uma mulher na flor da idade...o que ela iria querer com um velho como eu? Desde nossa separação, eu já tive outras namoradas, mas as mulheres não são mais como antigamente, elas não querem nada sério. Depois de um tempo elas vão embora. Você sabe o que foi que a última me disse quando perguntei a razão pela qual ela queria se separar de mim? “Descurti”, ela me respondeu!
- Seu Tony, sua vida parece uma fotonovela! Mas não fique triste, não. Logo, logo, o senhor vai conhecer alguém interessante. Na verdade, eu acho que o senhor ia gostar muito de conhecer minha tia, ela também é uma mulher cheia de histórias para contar.
- Hummm. Pode ser. Pode não ser. Mas e você? Você gostaria de jantar hoje à noite no Maxim’s comigo? Dizem que a vista da Urca lá de cima é uma maravilha!
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