O açougueiro de Paris: o consultório macabro do Dr. Petiot (cap. 2)
Já fazia 5 dias que uma fumaça espessa e malcheirosa escapava pela chaminé da mansão em frente à casa de Madame Marçait. A situação só fazia piorar, pois naquele dia o cheiro se tornara especialmente insuportável: uma mistura de cheiros de borracha, cabelos e caramelo queimados agora empestava a sua casa. Seu marido resistia em tomar uma atitude devido ao medo que tinha de chamar atenção para si: Paris vivia então o período da ocupação alemã, sendo comandada pelo traiçoeiro Regime de Vichy, e os franceses tratavam de viver sua vida do modo mais discreto possível para não se meter em situação difícil. Contudo, pressionado por sua esposa, Monsieur Marçait finalmente desceu à rua e foi bater à porta da mansão em frente para reclamar. Mas tudo o que encontrou foi um bilhete preso à porta, avisando, a quem interessado fosse, que a casa estava desocupada temporariamente e que as correspondências e demais entregas deveriam ser reenviadas para a rua Lombards, 18, em Auxerre.
Mr. Marçait decidiu chamar a polícia, que tentou em vão entrar na casa, mas as portas e janelas eram muito robustas e resistiram ao seu esforço. A polícia saiu então pela rua a investigar sobre o nome do proprietário e foi informada pela zeladora do prédio ao lado que aquela mansão de aspecto elegante, porém abandonado, que já havia pertencido à Condessa de Ségur no passado, fora recentemente vendida para o Dr. Marcel Petiot, que residia a poucos quilômetros dali. Com o endereço e o número do telefone do Dr. Petiot em mãos, a polícia ligou para a sua residência. “Aguardem um pouco, que em 15 minutos estarei aí para abrir a porta para vocês. Por favor não mexam em nada até a minha chegada”, foi a resposta tranquila do Dr. Petiot aos policiais.
Como meia hora mais tarde ninguém ainda havia chegado ao local, os policiais decidiram chamar os bombeiros para arrombar a casa. O que os dois bombeiros descobriram após forçar uma janelinha do segundo andar foi que a residência, repleta de móveis e objetos de luxo, estava completamente abandonada, toda recoberta de poeira e teias de aranha. Resolveram então descer ao porão para verificar de onde vinha a fumaça e ali encontraram duas fornalhas onde o fogo queimava selvagemente. Ao lado delas repousava uma imensa pilha de cinzas e vários sacos de carvão. Um exame mais detalhado mostrou que no interior da fornalha queimavam membros humanos. Pela abertura escancarada de uma fossa, situada no solo a poucos metros de distanciadas fornalhas, fizeram passar uma escada e iniciaram a descida para o subsolo. Mas a meio caminho, perderam a coragem de prosseguir. No fundo da fossa havia uma pilha de restos humanos jogados à esmo e mal encobertos por cal. A cena era devastadora.
Atrás da mansão principal, descobriram outras construções menores, que originalmente se destinavam a abrigar os empregados domésticos, e que eram ligadas à mansão principal por um corredor. Uma destas construções estava excepcionalmente limpa e reformada: o consultório médico do Dr. Petiot. Ela consistia em uma sala de espera interligada por uma porta a uma saleta triangular completamente vazia. Havia uma outra porta e ao seu lado uma campainha, porém ambas eram falsas. Nenhuma das duas portas podia ser aberta por dentro da sala triangular. Além disto, a pessoa que estivesse dentro desta sala poderia ser espiada por um olho mágico instalado em uma de suas paredes. Na parede em frente ao olho mágico, estavam afixados oito anéis de ferro à altura dos olhos do expectador. Mas, afinal, para que serviriam estes anéis, senão para acorrentar vítimas à espera do seu destino?
O comissário de polícia que acompanhava este caso, Georges Massu, havia sido escolhido como chefe da brigada criminal um ano anos e desde então se tornara figurinha fácil nos artigos que descreviam a rotina das delegacias nos jornais parisienses, especialmente no Le Matin. O periódico Paris-Soir denominava Massu como “o ás dos interrogatórios” e todos admiravam o seu trabalho. Vinte anos mais tarde, Georges Simenon confessaria em uma entrevista ao Figaro Littéraire que Massu foi um dos comissários de polícia que serviu de inspiração para o comissário Maigret, um dos personagens mais famosos dos romances policiais da literatura mundial.
Mesmo que a descoberta em março de 1943 do que se passava naquela mansão deteriorada tenha ocorrido durante o período da II Grande Guerra em que a França convivia diariamente com o desaparecimento e a execução sumária de seus cidadãos, todos ficaram atônitos com a violência da cena. Porém, rapidamente o comissário Massu foi capaz de elaborar diferentes teses para explicar o que poderia estar se passando ali naquela casa: o Dr. Petiot teria sido coagido pela Gestapo a usar a casa para se desfazer dos corpos de integrantes da Resistência francesa, judeus e outros criminosos; ou o Dr. Petiot seria um participante da Resistência que estaria utilizando a casa para livrar-se em segredo de agentes da Gestapo assassinados durante a ocupação; ou, finalmente, o Dr. Petiot seria um assassino em série. Uma coisa, porém, chamava a atenção de todos, era a abundância de sacos de carvão e cal no porão daquela casa, incompatível com o forte racionamento a que todos os habitantes de Paris. estavam submetidos, exceto os alemães e os colaboradores.
Após investigarem toda a casa e tentarem em vão localizar o proprietário em sua residência, os policiais descobriram que o Dr. Petiot havia desaparecido de Paris. Contudo os vizinhos reportaram que, na calada da noite, a despeito do toque de recolher vigente na cidade, havia um grande número de pessoas que entravam na casa. Eles informaram ainda que frequentemente escutavam gritos vindos do interior da casa, e que recentemente um caminhão havia levado dezenas de malas que estavam no local. O enigma crescia cada vez mais, e os policiais decidiram então ir a Auxerre para investigar a outra residência do Dr. Petiot.
Embora a liberação de Marcel Petiot pela Gestapo tivesse ocorrido há poucos meses, quando a investigação sobre o Dr. Eugène não forneceu fortes indícios sobre o envolvimento dele com o desaparecimento de judeus e outros desafetos do regime nazista, ninguém foi capaz de fazer uma ligação entre estes dois casos, pois a troca de informações entre a polícia francesa e a Gestapo era muito limitada. Foi apenas quando as investigações da polícia sobre o Açougueiro de Paris ganharam a primeira página do jornal, que a Gestapo se deu conta da besteira que tinha feito quando liberou o Dr. Petiot.
Este relato se baseia em fatos descritos na mídia. Conheça no próximo capítulo o desfecho dos fatos.
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