Nosso destino está nas mãos de Deus (Brava gente Açoriana V)
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Após os terremotos de 1757 e de 1759, em que houve uma destruição generalizada nas ilhas de São Jorge e de Picos, que causou a morte a mais de 1000 pessoas, em 1761 houve uma forte erupção vulcânica na Ilha Terceira. Nesta catástrofe morreram os pais de Francisco e seu irmão do meio. Algum tempo depois, chegou no Brasil a notícia da erupção vulcânica nos Açores. Contudo, no Desterro, não se sabia maiores detalhes do que tinha acontecido por lá. Finalmente três meses após a erupção, Francisco recebeu de seu irmão mais velho uma carta com a notícia de que seus pais haviam morrido e que agora ele era o dono das terras na Ilha de Picos e das propriedades na Ilha Terceira.
“Como se não bastasse perder meus pais, eu perdi qualquer ligação com a minha terra natal. Agora nem tenho mais onde ficar, se um dia desejar voltar a Portugal. Isso é uma grande injustiça, Alda Maria. De meu pai, só herdei o nome. Mas eu já sabia que um dia isso iria acontecer”. As notícias recebidas de Portugal haviam deixado ele profundamente irritado. “Nessas horas não há lugar melhor para afogar as mágoas do que a taverna. Vou ver se encontro por lá meus amigos do exército”, disse Francisco para sua mulher, enquanto virava as costas indiferente às suas súplicas e saía de casa batendo a porta.
Dois anos depois, durante a invasão espanhola da Villa do Rio Grande, os colonos portugueses, revoltados com o seu rei, tinham desertado das tropas, entregado arma e munição aos castelhanos e aclamado o rei inimigo. Francisco, que tinha vindo com sua tropa proteger as terras do Sul contra a invasão espanhola, havia encontrado Manuel em meio ao campo de batalha. Ao final da guerra, os espanhóis acabaram sendo expulsos e o rei de Portugal foi convencido pelos seus ministros a cumprir suas promessas feitas aos colonos, o que trouxe de novo a paz aos habitantes do lugar.
Com o retorno das tropas ao Desterro, Francisco decidira ficar para trás, para ver como era a vida nas terras do Sul e se ele gostaria de se mudar para estas bandas. “Tu não sabes como foi bom te reencontrar, homem de Deus. Tu soubeste que meus pais morreram durante a erupção vulcânica de 1761? Eu sinto tantas saudades daqueles tempos que vivíamos lá das Ilhas! Às vezes sinto uma dor no peito tão grande, que quase choro. A vida lá no Desterro até que é boa, mas aqui no Rio Grande, em meio a esta gente abrutalhada, que não conhece as leis de Deus nem dos homens... Mal se pode distinguir eles das feras que vivem escondidas ali na mata! Não consigo imaginar como você pode viver assim tão só, Manuel? Você pelo menos poderia ter encontrado uma mulher boa para casar com você, não é mesmo?”.
Com a convivência diária, os dois haviam se tornado confidentes e faziam quase tudo juntos. Manuel agora vestia as roupas que havia recebido de Francisco quando este partiu da Ilha dos Picos para o Brasil, e isto o tornava consideravelmente mais elegante do que as gentes do lugar. Todos no vilarejo haviam esquecido que ele havia chegado ao Brasil como degredado. Boa parte do povo do vilarejo acreditava que ele fosse de origem nobre, dado o sucesso que ele havia obtido no cultivo de suas terras e à amizade próxima com Francisco, que o tratava como a um irmão.
Após alguns meses de retardo, Francisco finalmente deixou a fazenda de Manuel, onde estava hospedado, e partiu em direção ao Desterro juntamente com um grupo de carreteiros, que transportavam o produto da colheita das fazendas do Sul para os portos, de onde seguiriam por navio para Portugal. Após dois meses viajando pelos caminhos de terra, ele finalmente chegava ao Desterro. “Alda Maria, encontrei um amigo de infância lá na Villa de Rio Grande. Seu nome é Manuel. Ele trabalhava nas terras de meu pai, onde era o capataz. Eu cresci tomando banhos de lago, escalando a Montanha de Picos e supervisionando as vindimas junto com ele. Bons tempos aqueles”, Francisco comentou com sua esposa, o rosto radiante e desinchado. Neste período em que ele ficara lá no Sul, ele havia recuperado a sua antiga forma: perdera a barriga, passara a beber menos e agora conversava com ela em um tom um pouco mais doce do que aquele usado nos últimos tempos, antes da invasão espanhola.
“Mostrei a sua pintura ao Manuel, e ele me disse que você é muito bonita, que o faz lembrar das mulheres da sua família. Ele mandou lembranças e disse que terá imenso prazer em nos hospedar quando nos mudarmos para nossas novas terras lá no Sul”. “Vamos, sim, homem. Estou muito feliz com essa nova chance que o destino está nos dando. Quem sabe até mesmo possamos ter um filho? Você poderia convidar seu amigo para ser o padrinho”. “Sim, quem sabe”, respondeu Francisco sem muita esperança. “E você poderia levar junto conosco uma amiga sua. Manuel precisa de uma boa companheira”. Alda Maria o admirava sorrindo, enquanto ambos prosseguiam fazendo planos para o futuro. Neste momento a vida estava bem melhor do que aquela dos últimos anos, em que ela tinha sido deixada de lado, em troca de aventuras de curta duração. O que será que o futuro reservava para eles dois? “Eu tenho a impressão de que já conheço o seu amigo Manuel de tanto que você fala nele. Acho que vamos nos dar muito bem”.
Em 1767, o rei ordenou que fossem tomadas as medidas necessárias para o assentamento dos colonos e o cumprimento de suas promessas, e, finalmente em 1773, 60 casais foram assentados no Rincão do Carro, situada à beira da Lagoa dos Patos ,um pouco mais ao Norte de Villa de Rio Grande. Nesta ocasião, Alda Maria viu seu marido partir em direção à Província de Rio Grande para tomar posse de suas terras. No primeiro ano em que Francisco viveu no Rincão, ele recebeu muita ajuda de Manuel, que veio da Villa de Rio Grande para ajudá-lo a construir sua casa e organizar as tarefas dos escravos. Um ano mais tarde, Alda Maria viria de mudança para o seu novo lar. A vida no Sul era dura, mas não desprovida de graça. As 60 famílias que vieram juntas para o Rincão se apoiavam mutuamente e festejavam unidas todos os feriados religiosos, casamentos e batismos. Além disto, Manuel vinha seguidamente visitá-los, pois sua fazenda ficava a apenas quatro dias de viagem à cavalo.
Aos poucos, Alda Maria e Manuel se aproximaram. Ela já o considerava como membro de sua família e alguém em quem podia confiar quando necessitasse de ajuda, pois seu marido nem sempre estava disponível. Nos dois primeiros anos de assentamento, em Francisco havia se dedicado de corpo e alma à exploração de suas terras e à ampliação de sua casa de modo a atender às exigências de Alda Maria. Agora, porém, ele voltara a beber e a procurar outras mulheres. “Eu não entendo o porquê do seu descontentamento, mulher. Você não vê que eu tenho feito todo o possível para agradá-la?”. Mas Alda Maria seguidamente acordava ao raiar do sol com o som dos cascos do cavalo que trazia para casa seu marido ainda bêbado, mal se mantendo sobre a sela. Ele vinha da taverna cheirando a fumo barato e perfume de mulher da vida. Dois anos após a vinda da sua esposa para o Rincão, ele adoecera novamente do pulmão devido à vida desregrada que levava. Desta vez, ele seria tratado por sua mulher e por Manuel, que aproveitando o período de descanso após a colheita, passaria mais de um mês fora de casa, ajudando a cuidar da fazenda de Francisco.
“Você é uma mulher muito forte, Alda Maria, um exemplo de dedicação. Eu já te disse que você me lembra das mulheres de minha família? Quando estou com você, me sinto em casa, tranquilo. Se eu encontrasse uma mulher assim como você, eu me casava na mesma hora”. Alda Maria, encabulada, não soube o que responder. À medida que a saúde de Francisco piorava, mais Alda Maria e Manuel se aproximavam. Até que, aos 38 anos de idade, vinte anos após conhecer Francisco, ela finalmente engravidava. Esta notícia caiu como um raio para os dois amantes. Seria difícil explicar esta gravidez ao seu marido.
Pouco tempo depois, chegou às mãos de Francisco uma carta. Nela ele era avisado de que também seu irmão mais velho havia morrido. Agora ele, Francisco, era o único herdeiro de todos os bens da sua família em Portugal, uma vez que todos os demais haviam morrido e seu irmão não deixara uma prole. Nesta mesma noite, recuperado de sua doença como que por milagre, Francisco não se continha de felicidade. “Finalmente teremos a vida que eu mereço. Alda Maria, prepare nossas trouxas, pois voltaremos para Portugal no primeiro navio. Estamos ricos. Ricos! Vamos deixar estas terras difíceis para trás e voltar à nossa terra natal. Mas antes disso, vou festejar. Adeus Alda Maria, vou festejar com meus amigos lá da taverna o nosso retorno à terrinha. Vou contar à todos que agora somos ricos produtores de vinho e proprietários de terras. Chega desta vida difícil. Chega!!!”. Pouco depois de receber a notícia, ele partia em direção ao vilarejo, galopando às margens da mata que bordejava a fazenda.
Alda Maria e Manuel ficaram para trás, infelizes. Agora que ambos haviam descoberto o amor de suas vidas, haveria todo um oceano entre eles. Provavelmente nunca mais se veriam novamente... E como explicar a sua gravidez a Francisco, que nunca mais a procurara na cama? “Não chore, Alda Maria. Assim você me deixa desesperado. Não sei o que fazer. Talvez você pudesse deixá-lo ir sozinho para Portugal e ficar vivendo aqui comigo em minha fazenda. Sua vida seria mais difícil, pois eu não tenho riquezas para te oferecer. Tenho apenas o meu amor. Além disso, ele não lhe dá valor; está sempre correndo atrás de outras mulheres”. “Se não fosse este filho que carrego no meu ventre, eu me mataria de vergonha. Mas como eu poderia abandonar meu marido, se o matrimônio é um laço sagrado? Nossos destinos estão nas mãos de Deus, não cabe a nós decidir”, respondeu Alda Maria, aos prantos.
Às cinco horas da manhã, os dois continuavam no alpendre da casa, ela com os olhos inchados de tanto chorar. Tão ocupados eles estavam com o seu drama pessoal que nem viram que o céu começara a clarear no horizonte, tingindo-se de uns tons pastel, que se refletiam nas águas da Lagoa dos Patos. Bandos de aves passavam silenciosos sobre suas cabeças em direção ao Sul, para acasalar. Subitamente, eles foram surpreendidos pelo barulho dos cascos de um cavalo contra a terra dura do caminho e se lembraram de que já era hora de Francisco voltar da esbórnia. Mas quando levantaram os olhos em direção ao som do galope, ao invés de Francisco, viram um escravo que vinha desesperado e mal segurava os arreios do animal. Ao descer do cavalo, Cosme, o escravo que sempre andava junto com Francisco, começou a chorar, sem que nenhum dos dois conseguisse entender o que ele dizia. Quando, enfim, ele acalmou, ele conseguiu contar a tragédia: “Dona Alda, não foi culpa minha. Eu não tinha arma para defendê-lo. E o patrão estava muito bêbado para conseguir dar um tiro certeiro na onça. O tiro se perdeu no ar, e agora o patrão e o cavalo estão mortos lá na estrada. A onça escapou... Não foi culpa minha, eu juro!”
Oito meses mais tarde, o filho de Alda Maria nasceria e seria registrado como filho de Francisco, apesar dos boatos que começavam a circular pelo assentamento. Após dois anos de viuvez, Alda Maria e Manuel finalmente se casariam. Ao completar 18 anos, seu primogênito cruzaria o oceano na direção inversa e tomaria posse dos bens herdados por Francisco em Portugal. Os demais filhos do casal viveriam no Brasil, junto com seus pais, e se tornariam, com o tempo, uma das famílias de origem portuguesa mais ricas e respeitadas da Província do Rio Grande.
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