Nem tudo dura pouco
“Trudi, pega um pano aí no porta-luvas e passa no para-brisa, por favor? Eu não tô enxergando nada. Só falta a gente ficar presa no meio desse aguaceiro. Cruzes, eu nunca vi as ruas inundarem tão rápido. Se a água atingir o motor do carro, kaputz.Ah, melhorou um pouco, obrigada. Mas eu tô achando que não vai dar para te deixar em casa, pois as ruas próximas à tua estão todas inundadas. Você pode dormir lá em casa esta noite. Amanhã cedo as águas já vão ter baixado.”“Puxa, obrigada Rute. Bendito o dia que eu conheci vocês”. “Se não fosse a gente, você estaria agora na sua casa, bem seca e quentinha”, Rute responde rindo. “É, seca, sozinha, e pensando na morte da bezerra.”
“Você está gostando de morar aqui no Rio, Trudi?”. “Estou sim. Nos primeiros meses foi meio difícil... Montar casa, me ambientar no trabalho, me situar na cidade, mas desde que conheci vocês, tudo ficou mais fácil. Já não passo mais o tempo todo pensando no ‘falecido’”. Rute sabe muito bem o que a amiga está passando e reponde sem titubear: “É, terminar uma relação é difícil, e é pior ainda quando a gente percebe que se distanciou dos amigos. A gente acaba ficando muito sozinha. Mas agora que você nos conheceu, não se preocupe mais com a solidão. Vem, vamos arrumar tua cama. Eu tenho um colchonete extra, para aqueles dias em que os amigos de meu filho vêm dormir aqui em casa. Você vai dormir no quarto dele, pois ele está viajando.
Pronto, tudo arrumado. Se precisar de mais alguma coisa, me fala”. “Obrigada, Rute. Tá tudo ótimo. Boa noite”. Trudi olha desanimada para o colchonete fininho colocado direto sobre o chão e pensa nas suas costas. “Amanhã certamente vou acordar toda doída”. Ela coloca suas roupas úmidas sobre o encosto de uma cadeira e examina as fotos das viagens, dos amigos e da namorada que o rapaz colou em um painel ao lado da cama, antes de finalmente apagar a luz e se deitar. Desconfortável, sentindo os ossos do quadril e dos ombros fazendo pressão contra o piso duro, ela relembra os tempos em que dormia de conchinha, abraçada ao corpo quente do Xico, e finalmente dorme.
A noite está escura como breu e Trudi está sozinha no meio da rua onda mora, pois a essa hora da madrugada todos já estão em casa, dormindo embalados pelo som da chuva contra a vidraça. Em vão, ela tenta libertar seu pé, preso pela tampa de um bueiro e, apesar de seus gritos por ajuda, ninguém aparece para ajudá-la. Ela agita os braços, afastando de si os restos de lixo que flutuam na superfície escura das águas, enquanto assiste indefesa o nível das águas subir rapidamente. Quando as águas enfim atingem a altura do seu rosto, Trudi cobre os olhos com as mãos e começa a berrar com todas as suas forças, sentindo o corpo cair no espaço. Ao abrir os olhos, ela se depara com suas roupas ainda úmidas penduradas no espaldar de uma cadeira, e com o eco de seus gritos. Ainda desnorteada, ela se senta no colchonete e sente sua mão direita pousar na água. O impulso de um novo grito comprime sua traquéia.
O cérebro de Trudi custa a processar a imagem captada pelos seus olhos: em um quarto inundado pela luz de um sol de fim de verão, ela se encontra ilhada em seu colchonete. Todo o piso ao redor está recoberto por dois dedos de água. A umidade avança pelos cantos do lençol, empapando o local onde antes repousava seu rosto. “Mas como a chuva pode ter inundado o apartamento de Rute? Nós estamos no 19º andar!”. Ela resolve sair do torpor e ir em busca de sua amiga. Quando abre a porta do quarto em que dormiu, ela vê que todo o apartamento está inundado e que o nível d’água sobe rapidamente. Da porta do banheiro, vem um som de cascata, e, quando ela se aproxima, vê que a água jorra forte de um cano cuja conexão se rompeu. Ela percorre todas as peças do apartamento em busca da amiga, sofrendo de antemão pelo estrago dos móveis e da tábua corrida que a inundação vai causar. Ao abrir a porta do quarto de Rute, ela a encontra dormindo tranquilamente.
“Rute, acorda! Tua casa está toda inundada. Você sabe onde fica o registro do banheiro?”. Rute encara Trudi com uma expressão de desagrado e, à muito custo, suprime o desejo de virar de lado e continuar dormindo. Ela é uma destas pessoas cujo cérebro não funciona bem antes do primeiro café. Toda aquela agitação de Trudi lhe incomoda feito enxame de mosca varejeira. “Ah, não precisa desesperar”, responde Rute, tranquila. “Isto já aconteceu antes. Deixa que eu vou interfonar para o porteiro, pois ele é que sabe onde fica o registro do banheiro. Eu nunca me lembro dessas coisas...”
Lá pela metade da manhã, Trudi sente o corpo todo moído. Não bastasse uma noite de sono pouco reparador, ela ainda enfrenta uma manhã de trabalho pesado. Elas já estão há horas arredando móveis e passando o rodo por todo o piso do apartamento, puxando a água em direção aos ralos da cozinha e dos banheiros. “As tampas dos ralos não deviam ser mantidas abertas, já que as conexões dos canos costumam se romper?”, Trudi questiona a amiga. “É porque eu detesto barata”, Rute comenta com cara de nojo, enquanto fecha novamente as tampas de ralo. Trudi esboça um riso, enternecida. “É tão bom ter amigos novamente. Até as esquisitices deles são divertidas”, ela pensa, enquanto passa um pente nos cabelos e procura seu celular na bolsa, para chamar um taxi.
Quando o taxi chega na esquina de sua rua, ela vê que o cenário de seu pesadelo não estava muito distante da realidade. A água da chuva já escoou, deixando um canto assoreado pelas areias que desceram do morro. Lá pela metade da sua quadra, duas árvores tombaram impedindo o trânsito dos automóveis. Os funcionários da lavanderia e da farmácia já removeram as placas de ferro presas na entrada da loja junto ao chão, para impedir que os objetos trazidos pela corrente se choquem contra a cortina de ferro.
No sábado seguinte, Rute e Trudi marcam um cineminha no Botafogo Praia Shopping. Elas vão assistir ‘Olga’, o filme sobre a vida da militante comunista Olga Benário, uma judia alemã, e seu amante, o brasileiro Luis Carlos Prestes. A história é tensa e Rute se remexe incessantemente na cadeira. Ela reage às cenas fortes como se fosse a própria Olga, soltando impropérios em altos brados. Os espectadores das poltronas mais próximas se viram para ver quem é esta que perturba o silêncio da platéia. No auge da tensão, Rute se agarra aos braços da sua poltrona, como se tivesse de ser detida em seu impulso de interceder na cena. “Mas que absurdo, eles são todos uns animais”, ela fala quando as luzes da sala se acendem, e antes que o movimento de saída se inicie, ela força sua passagem pelo espaço estreito entre as pernas dos espectadores ao seu lado e os encostos das poltronas situadas à sua frente. Trudi a segue, pedindo desculpas em tom quase inaudível às demais pessoas sentadas em sua fila. Quando chegam ao saguão do cinema, Trudi pergunta à sua amiga se tudo está bem. “Está tudo bem”, reponde ela em tom alterado, “Eu só queria fumar um cigarrinho”. Trudi volta os olhos para a grande janela de vidro situada na fachada do shopping center. Lá fora ela vê o Morro do Pão de Açúcar e uma nova tempestade que avança em direção à costa. Ela encolhe os ombros e abraça o próprio peito, tentando aplacar o frio que apenas ela parece está sentindo: “O mês de março no Rio é uma merda”, ela exclama, vendo Rute pescar no fundo de sua bolsa um maço de cigarros e um isqueiro.
Bastam três tragadas furiosas, para que o segurança do shopping perceba o que está acontecendo. Ele se aproxima de Rute e, em um tom educado, lembra ela de que “Fumar é Proibido” no shopping, ou em qualquer outro lugar fechado da cidade. Ela ainda tenta argumentar, mas quando vê que o segurança é um homem imenso em todas as dimensões, finalmente desiste, joga o cigarro no piso branco imaculado e torce a ponta do pé, esmagando a bagana à exaustão antes de dar as costas ao segurança e dirigir-se à saída. Trudi apenas a segue, dócil feito um carneirinho.
De pé na calçada, enquanto Rute acende um novo cigarro, Trudi tenta apaziguar os seus ânimos, comentando com a amiga “Pobre Olga, eu imagino os sofrimentos pelos quais ela, uma militante judia grávida, deve ter passado ao ser enviada pelo governo Vargas para a Alemanha nazista durante a segunda guerra mundial”. Mas ao invés de se acalmar, Rute vê enfim a chance de extravasar seus demônios: “Como é que você poderia saber? Logo você, com esse seu sobrenome alemão, com certeza é filha e neta de nazistas. Vocês nunca ligaram para o sofrimento dos judeus. Culparam meu povo por tudo o que deu de errado na Alemanha, e, como se isto não bastasse, perseguiram e mataram todos os seus descendentes”. Os passantes, surpreendidos pelos gritos de Rute, olham com olhos acusadores para Trudi. Um deles, puxa a mulher a quem está abraçado para mais próximo e exclama em tom audível “A polícia tem descoberto vários núcleos de movimento nazista no sul do Brasil. Eu não sabia que aqui no Rio também tinha nazistas”, e então sai caminhando tranquilamente em direção à estação de metrô.
Trudi observa o pequeno número de pessoas que as cercam, encolhe os ombros e abre as palmas das mãos, em um gesto universal de quem não entende o que está se passando. A maior parte do grupo se dispersa, restando apenas duas mulheres, sedentas por sangue. Trudi então reúne toda a sua calma e sangue frio e pergunta mais uma vez “Você está bem, Rute?”, e antes que ela inicie uma nova rusga, se despede dizendo “Acho que está na hora de eu voltar para casa. Não se preocupe comigo, pois moro aqui bem pertinho. Vou caminhando.” E inicia seus passos em direção a sua casa, pensando em como era possível que uma guerra que havia terminado há mais de 70 anos acabasse de fazer uma nova vítima.
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