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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Memórias de uma Falsa Teúda

Nesta imagem aparece a autora da cronica e o argentino que se sentou ao lado dela para tirar uma foto na casa de tango

Ontem arrumei meus álbuns de fotos antigos. Datei aqueles que restavam suspensos no tempo, organizei todos por ordem cronológica. Matei as saudades de umas poucas viagens fantásticas relendo as histórias redigidas à mão no entorno das fotos, relembrei com a ajuda de mapinhas rascunhados por mim mesma geografias a tempo esquecidas... Tem sensações que só um álbum permite usufruir. Este hábito preguiçoso que adquiri com o tempo, de voltar de viagem e deixar meio abandonadas na nuvem todas as fotos digitais que tirei, matou parte do meu prazer de viajar.

Do ano em que migrei para a fotografia digital, restou apenas uma foto, destas tiradas por um fotógrafo profissional em uma casa de espetáculos, envolta em uma capinha de papel couché branco decorada com o nome da casa. É de 2006 o único testemunho analógico da minha vida de turista destes últimos 17 anos. As fotos digitais desta viagem estão tão bem guardadas que vai demorar um tempo para encontrá-las. Os nomes dos locais e pessoas que conheci, mas não registrei, já esqueci há tempos.

Abro a capinha de papel, da casa de tango “El Querandi”, e encontro um casal sorridente fazendo um brinde ao fotógrafo. Eu e um distinto cidadão argentino, que não tenho a menor idéia de quem seja. E desato a rir das memórias que jorram, irreverentes. 

Neste ano resolvi, como mulher independente que sou, viajar sozinha pela Argentina. Revisitei Buenos Aires e lá resolvi fazer um programa de turista: fui a um restaurante com show de tango. Cheguei cedo para pegar um bom lugar, mas ao que parece show de tango é para casais e grupos. A única mesinha de um lugar ficava atrás da única coluna, e foi lá que me colocaram. Sem possibilidade de troca.

Logo apareceu o garçom com a carta de bebidas e, servidos os vinhos, veio o fotógrafo. Passei 15 minutos me debatendo com a idéia de comprar ou não o “recuerdo” da noite, quando finalmente me dei conta de que o fotógrafo me evitava como se evita a proximidade de um portador da peste. Não havia mais ninguém para fotografar, quando enfim chegou um grupo de homens para a última mesa, ao lado da minha. Com as luzes quase apagando, o fotógrafo se aproximou para saber se eu gostaria de tirar uma foto e, já virando as costas antes de ouvir a minha resposta, foi surpreso pelo meu “por supuesto que si”.

Logo se levantou com grande alarde um dos argentinos da mesa ao lado e, meio como quem faz um galanteio, ele se ofereceu para posar para a foto comigo e assim salvar esta pobre mulher que vos fala do constrangimento de registrar em foto o seu abandono. Décadas de luta pela emancipação feminina neutralizadas por um único click. É preciso ser teúda, ao menos na foto.

É com prazer que saio esta noite, 17 anos depois, e encontro nos bares de Porto Alegre, grupos de mulheres que bebem e se divertem. Sem dono. Os homens, aliás, onde estão?

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Tags: preconceito, argentina, tango,

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